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Ronaldo Vainfas - 92 - Janeiro de 2003
Covil de hereges
Foto da capa do livro Inquisição: prisioneiros do Brasil
Inquisição: prisioneiros do Brasil
Autor: Anita Novinsky
Editora: Expressão e cultura - 276 páginas
Foto do(a) autor(a) Ronaldo Vainfas

"Inquisição: Prisioneiros do Brasil" é mais uma valiosa contribuição de Anita Novinsky à bibliografia sobre a atuação do Santo Ofício português em nosso período colonial. O livro é o terceiro da série denominada "Fontes para a História de Portugal e do Brasil", inaugurada em 1978 com "Inquisição: Inventários de Bens Confiscados a Cristãos-Novos no Brasil -Século 18", seguida com "Inquisição: Rol dos Culpados", publicado em 1992.
Historiadora pioneira nos estudos brasileiros sobre a Inquisição na perspectiva das mentalidades e autora de interpretações originais sobre o marranismo luso-brasileiro, Novinsky se dedica, nessa série de repertórios, a divulgar dados sistematizados da pesquisa que realiza há décadas sobre os cristãos-novos de algum modo envolvidos com o Santo Ofício entre os séculos 16 e 18. Trata-se de uma série de guias preciosos para os pesquisadores brasileiros, além de oferecer, para qualquer leitor, evidências concretas de que a atuação da Inquisição no Brasil foi mesmo para valer.
Neste terceiro repertório, Novinsky sumariza as informações sobre os 1.076 moradores do Brasil processados pela Inquisição desde a primeira visitação ao nordeste, entre 1591 e 1595, até o início do século 19, pois a Inquisição só foi extinta em Portugal em 1821, após a Revolução do Porto. Listando os personagens em ordem alfabética como um grande índice antroponímico e separando homens e mulheres, o guia fornece dados sobre o perfil de cada processado: nome, naturalidade, filiação, estado civil, ocupação, lugar de moradia, crime de que era delato e sentença. Têm-se aí os dados organizados para, no mínimo, fundamentar uma sociologia histórica dos processados, bem como evidências para se conhecer os ritmos e alvos preferenciais da perseguição inquisitorial nos seus quase três séculos de existência.
Desfilam nominalmente, caso a caso, antes de tudo os judaizantes, mas também os sodomitas, bígamos, solicitantes "ad turpia" que abusavam das penitentes no confessionário, blasfemos, praticantes de gentilidades, luteranos, feiticeiros, sacrílegos e muitos outros desviantes da fé católica. Ao lado de cada nome listado, uma informação valiosíssima: o número do processo no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, dado essencial para os pesquisadores. Os casos célebres de criptojudaísmo estão todos no guia, a exemplo de Ana Rodrigues, matriarca de Matoim, condenada à fogueira anos depois de morta no cárcere; Antônio José da Silva, o dramaturgo carioca, queimado em 1739; o padre Manoel Lopes de Carvalho, executado por judaísmo em 1726. E também aparecem réus de outros crimes já celebrizados pela pesquisa historiográfica recente: Fernão Cabral, o senhor de Jaguaripe que protegeu a santidade indígena; André de Freitas Lessa, chefe de uma troupe de sodomitas pernambucanos; Felipa de Souza, mulher processada por namorar várias damas na Bahia quinhentista.
Celebridades maiores ou menores à parte, o guia se destaca pelos dados agregados que, por sinal, são objeto de uma primeira quantificação apresentada na introdução do livro. Ficamos sabendo, logo de início, que foram cerca de 73% os homens processados, 40% deles naturais de Portugal, 28% dos quais dedicados ao comércio ou à agropecuária. Depois dos portugueses, a maioria dos processados era do Rio de Janeiro, cerca de 19%, embora, quanto ao lugar de moradia, a capitania tenha ocupado o segundo lugar, com 23%, prevalecendo a Bahia com cerca de 27%. Dentre as mulheres, à diferença dos homens, prevaleciam largamente as naturais do Brasil e, dentre elas, as cariocas ou fluminenses: 60% viviam no Rio de Janeiro e 47% eram dele naturais.
Os dados sobre moradia e ocupação dos penitenciados, conjugado ao fato de ser o judaísmo o crime de que foram mais acusados os luso-brasileiros (41% entre os homens e 74% entre as mulheres), confirmam logo a hipótese da cidade do Rio de Janeiro se ter convertido no eixo comercial da América Portuguesa, além de "covil de hereges". Isso é ainda mais eloquente quando se constata que mais de 50% dos processos relativos ao Brasil se concentraram na primeira metade do século 18, o século do ouro. Por outro lado, os réus de Minas Gerais não alcançaram 8%, o que indica uma ação inquisitorial essencialmente litorânea. Rio, Bahia e Pernambuco concentraram mais de 70% dos réus moradores no Brasil em todo o período.
Dos 1.076 casos, somente 20 pessoas -menos de 3%- foram levadas ao cadafalso em Lisboa, o que sem dúvida contribui para matizar a imagem de uma Inquisição apenas interessada em matar e confiscar judaizantes. Nem por isso fica atenuada a impressão do rigor inquisitorial, mensurável por outras sentenças, como os desterros ou cárceres a arbítrio, sem falar no estigma que pesava sobre a "gente da nação" e outros desviantes. O mínimo que se poderia dizer é que, com o passar do tempo, a simples existência da máquina inquisitorial funcionava como um aparelho de permanente chantagem sobre os negociantes de origem controversa no Brasil. E nisso, o reinado de d. João 5º foi mesmo o apogeu, enquanto se explorava o ouro das minas e o Rio se tornava o eixo do Atlântico português. É o que nos sugere, entre mil outras hipóteses, esse valioso guia publicado por Novinsky, grande mestra dos estudiosos brasileiros da Inquisição.


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense

Ronaldo Vainfas é professor do departamento de história da UFF.
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