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Walter Paixão - 119 - Abril de 2021
Concentração de renda no Brasil
Como seria possível pensar na redução da pobreza absoluta
Foto da capa do livro Uma história de desigualdade
Uma história de desigualdade
Autor: Pedro H. G. Ferreira de Souza
Editora: Hucitec - 421 páginas
Foto do(a) autor(a) Walter Paixão


No capítulo 5 de Uma história de desigualdade, considerado o coração da pesquisa, Souza apresenta o retrato da concentração da renda entre os ricos no Brasil em um período de 69 anos, compreendido entre1926 e 2013.

Por definição, em ordem decrescente na escala da distribuição, ‘ricos’ são o 0,1% dos declarantes, com renda média anual de pouco mais de R$ 2,8 milhões, e mensal de quase R$ 235 mil;  o 1% dos declarantes, com renda média anual de R$ 636 mil, e mensal de R$ 53 mil; os 5% dos declarantes, com renda média anual de R$ 230 mil, e mensal de R$ 19 mil; os 10% dos declarantes, com renda média anual de R$ 140 mil, e mensal de R$ 12 mil; para os 15% dos declarantes, incluídos também na categoria dos ‘ricos’, Souza não informa a renda. Os ‘não ricos’ são os restantes 85% dos declarantes.

Ele analisa o movimento da renda no interior do universo total dos ricos, mas esclarece que o foco principal da pesquisa é o estrato de renda do 1%. Por que o 1%? – Porque, segundo explica, trata-se de um estrato numeroso e rico o suficiente para ter alta visibilidade e grande capacidade de afetar tanto o nível quanto a dinâmica da desigualdade mesmo quando se considera a distribuição como um todo”. Na realidade, esse estrato não é tão numeroso, pois correspondia em 2013 a cerca de 136 mil declarantes do IRPF. Mas é numeroso ‘o suficiente’ para afetar tanto o nível como a dinâmica da desigualdade da distribuição como um todo.

É perturbador o fato de que um trabalhador brasileiro, ganhando à época o salário mínimo mensal de R$ 678, precisaria trabalhar por mais de 28 anos para ganhar R$ 235 mil, que é o equivalente ao que ganhava em um único mês alguém que integrava o estrato superior do 0,1% de declarantes. Mas era já perturbador havia tempo, especialmente desde que os estudos do grupo Piketty sobre o Brasil vieram a público, amplificando a notícia sobre o tamanho da nossa desigualdade. Por isso, é preferível destacar o fato de que, a partir deste livro, não apenas reforçamos o conhecimento de que somos um dos países mais desiguais do planeta, mas passamos a ter prova qualificada, nunca anteriormente apresentada, de que a concentração de renda no topo da distribuição, em mãos de um número relativamente pequeno de pessoas, possui uma longa história no Brasil: em 2013, havia décadas que os 10% mais ricos se apropriava de quase 50% da renda total do país, e os 50% mais pobres ficava somente com pouco mais de 10%. Mais importante: em 40 dos 69 anos de pesquisa, a curva de participação do estrato mais representativo dos ricos na renda do país não mostra nenhuma tendência de diminuição ou aumento. De fato, o 1% mantém-se firme na apropriação de 20% a 25% da renda nacional.

Armado da história da dinâmica de longo prazo da nossa desigualdade, que apresenta este caráter inercial, Souza derruba facilmente a tese da ‘curva Kuznets’, que inspirara Geraldo Langoni nos anos 1970, durante a ditadura militar, em sua empreitada para justificar as desigualdades salariais da época. Para Langoni, o aumento da desigualdade era produto natural de um ‘contexto de rápido crescimento, urbanização e industrialização’, que logo atingiria um ponto, a partir do qual a desigualdade recuaria. Porém, argumenta Souza, “a piora da concentração de renda [Assim como o estancamento dessa piora] ocorreu antes das altas taxas de crescimento trazidas pelo ‘milagre econômico’. Já havia piorado, “em momento de ajuste recessivo, arrocho salarial, perseguições políticas e violenta reforma institucional”. Em outras palavras, Langoni situa a dinâmica de piora da concentração das rendas e o consequente aumento da desigualdade, em um ponto da linha do tempo (o “milagre econômico”), em que esta piora não podia estar lá, porque já havia estancado um pouco antes! Portanto, longe dos fatos, ele procurava acenar para a opinião pública com a ideia de que era preciso aceitar sacrifícios no presente, em nome da certeza de prosperidade no futuro. Souza fortalece seu argumento, mostrando gráficos de crescimento econômico de outros países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em que não há o mais remoto sinal da presença do “U invertido” de Kuznets.

As narrativas benignas, ao atribuírem função determinante a variáveis estruturais na diminuição da desigualdade (tecnologia, aumento de produtividade do trabalho, via qualificação da mão de obra), enxergam somente aquilo que Piketty chama de ‘forças convergentes’ de longo prazo, atuando no sentido de aproximar os extremos da distribuição. As narrativas críticas de viés marxista, ao atribuírem também peso determinante a variáveis estruturais de longo prazo para aumentar a desigualdade, enxergam somente as ‘forças divergentes’, atuando para aprofundar o fosso que separa os extremos da distribuição. Já Souza, seguindo Piketty, parece propor que se avalie a ação destas ‘forças’ – convergentes ou divergentes – no chão duro dos dados econômicos, sociais e políticos, em suas curvas de curto e longo prazos; e se considere que, no caso da desigualdade brasileira entre ricos e não ricos, não estaríamos diante de forças convergentes ou divergentes, mas de forças “conservadoras” da situação de desigualdade. Como explicar tal situação?

Se, por um lado, a curva crítica de Souza, sobre a concentração de renda entre os ricos no Brasil nas últimas décadas, permite proclamar a falsidade da tese langoniana de um futuro menos desigual para o país nos anos 1970, por outro lado, ela permite também proclamar a falsidade da tese petista de que, durante os governos de Lula, o país teria assistido a uma diminuição da desigualdade, com o surgimento de uma nova classe média. Se fosse fato, a concentração teria recuado. E não recuou um milímetro, porque as transferências de renda para os estratos inferiores da distribuição não saíram dos estratos do topo.

A concentração de renda no topo é inercial e, ao mesmo tempo, relativamente estável. É inercial, porque sua curva representa um movimento constante ao longo do tempo, dentro de uma banda de apropriação da renda que flutua entre os 20% e os 25% da renda nacional. É também instável, podendo apresentar eventuais alterações, derivadas das curvas dos subgrupos que a compõem. Em outras palavras, os percentuais de participação de cada subgrupo mais rico alteram-se para mais ou para menos, sem alterar, fora da banda, o percentual de participação da totalidade dos 1% no topo em uma espécie de jogo de soma zero. O mesmo se aplica a todos os estratos da distribuição, e serve para entender o que realmente significou o surgimento da “nova classe média” brasileira. Dado que, nos “anos de ouro” dos governos de Lula, houve um aumento das participações dos 10% mais pobres, simultaneamente a um aumento da participação dos 10% mais ricos na renda nacional, isto demonstra, segundo Souza, que as transferências de renda para os estratos mais pobres não podem ser tomadas como exemplo de redução da desigualdade – não pelo valor pouco expressivo que representam, mas pelo nada de redução da desigualdade que produzem na relação do topo com o restante da distribuição. De qualquer modo, o pesquisador verifica que historicamente há flutuação, pontos da curva de maior ou menor desigualdade; e que, nas duas ditaduras do século passado, 1937 e 1964, houve aumento da desigualdade com o crescimento mais que proporcional das rendas do topo.

Por que a desigualdade não diminui?

Diante da afirmação de Souza de que seus estudos o levam a concluir pela existência de uma ‘determinação institucional’ para a desigualdade brasileira (não estrutural, portanto), devemos nos lembrar sempre que, por definição, esta desigualdade expressa a contraposição entre o 1% dos mais ricos e os 85% dos não-ricos. Obviamente, se há uma “instituição” determinante da desigualdade brasileira, esta é a instituição ‘ricos’. Diz ele: Em condições minimamente democráticas, a concentração no topo apresenta forte caráter inercial, pois os mais ricos dispõem de recursos políticos e econômicos que facilitam a organização em grupos capazes de exercer poder de veto e barganhar em posições vantajosas.

Souza parece endossar a tese de Alston de que houve um aumento da sensibilidade do poder público às demandas dos mais pobres, pondo em marcha programas de inclusão social, mas reafirma que o que importa mesmo assinalar é o nível e a estabilidade da concentração da renda no topo.  E, portanto, não há como falar em guinada redistributiva do Estado brasileiro, como muitos acreditaram. Até porque, esta incorporação de novas demandas ocorreu sem que tivessem sido extirpados antigos privilégios.

Os ricos têm meios legais e transparentes de obter e manter privilégios, via manipulação de instituições. É o caso da expansão das isenções  de pagamento do imposto de renda, considerada por Souza o principal fator de aumento da desigualdade  no período  2006-2013 – os rendimentos isentos cresceram de 45% para 50% e, com isso, tornaram-se a principal fonte de renda do 1% mais rico; é também o caso da obtenção de crédito subsidiado, mediante acesso aos recursos do BNDES e do FAT (Fundo de amparo ao trabalhador), para  financiamento de projetos ditos de interesse nacional – como os dos “campeões nacionais”. Anunciados como parte de uma estratégia tipo Brasil Grande, o fato é que, ao fim e ao cabo, esses projetos e seus patrocinadores acabaram no noticiário policial.

Conclusões ambíguas

Depois de guiar o leitor por caminhos pavimentados de dados estatístico-tributários sobre a renda dos brasileiros, Souza o coloca diante de uma verdade demonstrada e, pour cause, trágica: a média da concentração da renda entre os ricos no Brasil, calculada em 23% da renda nacional dos últimos 69 anos, é inercial e não há sinais de que possa diminuir no futuro. Por que é trágica? – Porque o poder concentrado nas mãos do 1% do topo da distribuição é suficiente para que os mais ricos protejam suas posições, impedindo mudanças no arcabouço institucional vigente, que possam promover redução da desigualdade entre nós. Aliás, Souza afirma que não há registro de casos concretos de países que, partindo de um grau de desigualdade tão alto quanto o do Brasil, tenham avançado de forma gradual e tranquila até o percentual próximo ao de um país europeu típico como a França, em torno de 10%.

Sensível ao caráter sistêmico, à complexidade e rigidez natural das instituições sociais, particularmente da instituição mercado, o autor recomenda cautela a quem se sinta justamente indignado com a desigualdade. Ele acha possível operar redistribuição entre as camadas pobres da sociedade, como fizeram os governos de centro-esquerda e esquerda, aumentando renda e reduzindo a pobreza absoluta, mas considera isto mera ‘acomodação’, nada tendo a ver com o que seria uma verdadeira redistribuição, a redistribuição entre ricos e não-ricos. E “...dada a intensidade da concentração de renda no topo”, Souza acha “... difícil fugir ao pessimismo quanto a questão distributiva”.

Sem a ajuda do conceito de “luta de classes”, para nomear suposto fator determinante da desigualdade e da miséria a ser neutralizado, Souza nomeia um combo de fatores: “...o efeito combinado e cumulativo de uma série de políticas e programas, de pequenas e grandes decisões”; e adverte que somente palavras retóricas e “vontade política” são insuficientes para vencer este complexo conservador. É verdade que ele se solidariza à tese, segundo a qual, somente a ação de forças exógenas extraordinárias, como as desencadeadas pela Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos e na Europa, podem abalar as estruturas sociais, rompendo arcabouços institucionais caducos, para abrir espaço a reformas profundas.  Mas compara mal, com este fator de ruptura, a relação verificada entre os ciclos políticos do país e as alterações de curto prazo da nossa curva de desigualdade. Na verdade, forças extrainstitucionais de mudança efetiva, nunca tivermos no Brasil. Como as revoluções do século XX, em várias partes do mundo... 

Por outro lado, parece equivocado qualificar de “loucura” uma vontade política que se proponha a neutralizar rapidamente as forças conservadores do status quo. O leitor pode ser tentado a perguntar: pode-se chamar de loucura a ‘vontade política’ que tem estado por trás da ‘...série de políticas e programas, de pequenas e grandes decisõesque sustentam a desigualdade crônica do Brasil? Talvez o problema não seja a ‘vontade política’ enquanto tal, mas a narrativa que esta vontade venha a escolher para se referir ao objetivo de reduzir a desigualdade. Não pode ser a narrativa benigna, porque esta nega a existência da polarização e suas consequências; e não pode ser a narrativa crítica, porque esta se limita a anunciar a tragédia. ¢


Walter Paixão
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