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Yanet Aguilera - 93 - Fevereiro de 2003
Cinema e conflito
A montagem cinematográfica segundo Einsenstein
Foto da capa do livro Einsenstein e o construtivismo russo
Einsenstein e o construtivismo russo
Autor: François Albera
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro
Editora: COSAC NAIFY - 371 páginas
Foto do(a) autor(a) Yanet Aguilera

Com um atraso de aproximadamente dez anos, sai no Brasil este clássico sobre Sergei Eisenstein, de um dos seus mais importantes estudiosos. A presente edição ainda nos oferece o original e a tradução do ensaio "Stuttgart", escrito em alemão pelo cineasta para ser apresentado na exposição "Film und Foto", de 1929, em Stuttgart.
Nesse texto Eisenstein insiste que a arte só pode ser a expressão de contradições. Entre natureza e indústria, é o resultado do embate entre a pura racionalidade e o puro orgânico. Do mesmo modo, o cinema é o atrito entre sua forma racional e sua materialidade. A noção de conflito permite a Eisenstein se distanciar tanto dos formalistas quanto dos que defendiam a diluição da arte no informe.
O conflito prevalece em todos os elementos do filme -trabalho gráfico, quadro, volume, iluminação, aspecto espacial e temporal-, é parte fundamental dos conceitos de montagem e de cinema intelectual, as principais noções de sua teoria.
Lev Kulechov formulara a montagem como sucessão: a duração e o movimento do quadro cinematográfico criam um ritmo, cujo objetivo é descrever uma situação semelhante à do teatro ou da pintura figurativa. Como a sensação de movimento nasce, para Eisenstein, da superposição e não da sucessão de imagens, as possibilidades de construção fílmica não estão ligadas à continuidade, mas à criação de incongruências na imagem.
"Miss Cecy Loftus", de Toulouse Lautrec, é um dos exemplos desse tipo de incongruência. O estranhamento se dá por um recorte temporal: o torso de miss Cecy vai para uma direção, e as pernas, para outra, diversa da exigida pelo desenho naturalista. Eis uma montagem-choque, obtida pela mudança inesperada da direção do traço. O conflito é, então, uma espécie de síncope.
Os conceitos de contraponto musical e ideograma esclarecem mais esse tipo de montagem. O contraponto não apenas enquanto complemento, mas como oposição, tal como a música serial o entende: duas combinações sonoras opostas criam a música. O contraponto visual realiza a mesma operação no cinema. E, assim como o ideograma junta boca e pássaro para significar canto, o cinema associa elementos díspares para formar um terceiro, que pode ser uma sensação ou um conceito.
Enquanto choque e associação de elementos opostos ou díspares, a montagem pode fugir ao condicionamento espaço-temporal de uma sucessão descritiva, a exemplo das imagens de "Outubro", que mostram os tanques de Kornilov esmagando a estatueta de Napoleão, metáfora de Kerensky; pode ainda criar a idéia de movimento artificial, como em outra sequência de "Outubro", na qual se tem a sensação de um disparo sem que ele tenha ocorrido, devido à combinação das imagens de duas metralhadoras diferentes e do atirador; e pode também insinuar movimento nos fragmentos da montagem, como o que resulta da associação de planos de um sujeito que corre, de um fuzil que atira e da água que jorra.
Contrariamente ao cinema hollywoodiano, Eisenstein propõe associações não submetidas ao enredo. Num filme comum, a montagem de planos -por exemplo, de um punhal, da mão que o empunha e do sangue jorrando- cria o suspense que tem como resultado a tensão, a expectativa ou o medo do que vem a seguir. No caso de uma fita como "Outubro", quando o General Kornilov luta em nome de Deus e da Pátria, a sequência, que associa diversas imagens de deuses, visa ao desmonte do conceito de Deus. A primeira suscita sentimentos, a segunda, um raciocínio.
Sem o primado da história, a associação sincopada chama a atenção para o processo criativo do filme. Visto que se quer mudar o modo de mexer com o espectador, a arte deve se opor à forma corrente de mostrar as coisas e, portanto, o atrito substitui a continuidade. O espectador deixa de ser solicitado apenas emocionalmente, pois deve elaborar conceitos a partir de imagens e tomar consciência do processo de constituição da obra. Eis o cinema intelectual, cujo alvo principal é a desestruturação dos hábitos de conhecimento do espectador.
Assim como Eisenstein lamenta não terem compreendido as possibilidades de suas concepções de montagem e de cinema intelectual, François Albera também deplora que "Stuttgart" não tenha tido a recepção que suas inovações teóricas mereciam. As causas são diversas: más traduções, problemática demasiado original para ser compreendida pelos contemporâneos, crise das vanguardas, advento do cinema sonoro etc.

Stalinismo e construtivismo
Gostaria de destacar dois aspectos das reflexões de Albera sobre a obra de Einsenstein: suas ligações com o socialismo soviético e com a arte construtivista.
Um dos objetivos de Albera é desfazer os mal-entendidos sobre a dependência do cineasta à política do partido e sobre seu suposto stalinismo. Embora seja estranho que não tenha sequer mencionado a cena de "Outubro" em que Lênin se opõe a Trótski e apóia o levante que levará os bolcheviques ao poder (versão sustentada pelos stalinistas), Albera mostra que Eisenstein jamais renuncia àquilo que se denominou "encomenda social": a tentativa de compreender de forma autônoma as exigências sociais.
Ele nunca fez do partido comunista o grande reestruturador da sociedade e, muitas vezes, foi contra as decisões oficiais. Os reparos de Stálin e parte da crítica de esquerda à "Linha Geral", por exemplo, seriam devidos à dissociação entre a posição oficial e a do filme a respeito da política a ser adotada com relação à agricultura e a indústria. Eisenstein teve ainda sua carreira cinematográfica truncada, apesar de toda a admiração internacional e do sucesso que obteve, inclusive na União Soviética.
Albera consolida a imagem da independência de Eisenstein pelo exame do papel que desempenhou nos meios construtivistas. Oriundo dos futurismos italiano e russo, o construtivismo aprofundou o antimimetismo e o linearismo geométrico; à idéia de autonomia opôs a de utilidade, concebendo a arte como encomenda social capaz de mudar o homem e constituir um novo modo de vida. Eisenstein fez parte de "Outubro", o último grupo interdisciplinar de artistas e teóricos do movimento, que radicalizaram ainda mais a dimensão social da arte.
Por intermédio do teatro, chegou ao construtivismo, aliás quando este começava a ser desprestigiado pelas esferas oficiais. Meyerhold lhe revelou a encenação construtivista: ênfase na espacialidade e na biomecânica do ator, que abole a representação psicológica e se coloca como máquina e ferramenta cênica.
Do grupo russo Fábrica de Atores Excêntricos Eisenstein adquiriu a chamada montagem de atrações: a associação livre de elementos das artes populares, como o circo, o cartaz etc., a fim de construir momentos fortes e agressivos, não subordinados à unidade do espetáculo nem ao encadeamento de ações e gestos e capazes de provocar certas emoções no espectador. Eisenstein aperfeiçoou a montagem de atrações no cinema: a possibilidade de maior fragmentação torna as associações mais maleáveis e eficazes. Isso lhe permitiu formular a idéia de cinema intelectual: um processo em que a associação de imagens-pulsões forma um conceito, que não está na imagem, mas na cabeça do espectador.
Em poucas palavras, a ênfase no espectador constitui para Albera a grande originalidade de Eisenstein. Ela lhe possibilita ir além tanto do construtivismo de Meyerhold, centrado no ator, quanto da problemática de teóricos e cineastas como Viktor Chklovski e Dziga Vertov, que viam o cinema como uma entidade constituída, cujos códigos e leis era preciso explicitar. Para Eisenstein não importa "o que é", e sim o "como", já que se trata de mobilizar o espectador. A busca de uma suposta essência leva à constituição de um sistema que se fecha sobre si mesmo. Em contrapartida, a procura de um método artístico leva à construção de um processo, cujos objetivos estão além da própria arte, na esfera social. Pode-se dizer, assim, que, para Albera, Eisenstein e seu ensaio "Stuttgart" cumprem à risca as exigências construtivistas.


Yanet Aguilera é doutoranda no departamento de filosofia da USP.

Yanet Aguilera é professora da Unifesp.
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