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Ferreira Gullar - 92 - Janeiro de 2003
Certo, justo e belo
Ferreira Gullar escreve sobre o lugar de Amílcar de Castro (1920-2002) na arte brasileira
Foto do(a) autor(a) Ferreira Gullar

Já muito se escreveu sobre a obra de Amilcar de Castro, mas talvez nenhum crítico tenha procurado situá-la como um dos pólos da experiência neoconcreta e, consequentemente, como uma alternativa oposta à que adotaram Lygia Clark e Hélio Oiticica. Acredito que esse enfoque ajudará a entender melhor o significado de sua obra e o que ela representa no âmbito da arte brasileira dos últimos 40 anos.

Antes de mais nada, devemos entender que o movimento neoconcreto, por razões que ainda merecem ser estudadas, representou um momento extremo da experiência de vanguarda em âmbito internacional e que, por isso mesmo, tanto no plano da realização como no plano da teoria, se antecipou a outras propostas que representaram uma mudança importante na arte contemporânea.
Para falar de modo bem resumido, pode-se dizer que o movimento neoconcreto assumiu de maneira radical as propostas de uma certa tendência da vanguarda que, deflagrada pelo cubismo, alcançou sua máxima radicalidade no neoplasticismo de Mondrian e no suprematismo de Malevitch. Tratava-se de fundar uma linguagem pictórica que nada mais devesse à velha pintura figurativa, que fosse de fato uma nova arte. Esta proposta conduziu, no caso de Malevitch, à tentativa de eliminar a contradição figura-fundo (o célebre quadro "Branco Sobre Branco"). Lygia retoma esse desafio e decide, em vez de pintar, agir sobre a tela, transformando-a afinal nos seus famosos "Bichos".
Radicalidade equivalente é a de Amilcar de Castro, ao assumir a herança da moderna escultura, mas recuando até a simples placa bidimensional, que é o oposto do volume e, portanto, da escultura. Assim como Lygia não aceita retornar à tela como lugar onde construir um espaço simbólico (ainda que abstrato), Amilcar também não admite lançar mão de qualquer recurso, seja figurativo, seja abstrato, da antiga linguagem escultórica. Assim, enquanto Lygia corta a tela, estufa-a e depois a reconstrói em placas que, deslizando umas sobre as outras, criam volumes virtuais mutáveis, Amilcar apenas corta e dobra a placa de metal para dela extrair a expressão plástica possível. Trabalha com o mínimo de recursos, como a desafiar sua própria inventividade.
Por trás dessas experiências está o questionamento de toda a arte anterior que, à luz da modernidade científica e tecnológica, aparece como algo atrasado e superado: a intuição, a sensibilidade, a fantasia deveriam ser substituídas pela racionalidade, pelos princípios científicos e pela nova tecnologia. A essa questionamento, os artistas buscaram diversas respostas: o construtivismo russo optou pela nova tecnologia, enquanto o dadaísmo aderiu à irracionalidade e o concretismo suíço se voltou para construção matemática.
No final da década de 40, a arte brasileira se reencontra com as tendências internacionais de que se alheara durante a Segunda Guerra Mundial, que terminou em 1945. A adesão à arte concreta foi um salto enorme que implicou a ruptura com o que até então significava a modernidade (a arte modernista surgida em 22) e o defrontar-se com o impasse: é que o concretismo já era uma experiência limite.
A ruptura abrupta da arte brasileira com o figurativismo modernista levou-a (no caso neoconcreto) a reassumir o radicalismo de um Mondrian ou de um Malevitch e a se defrontar com o mesmo impasse. Malevitch, depois de tentar construções no espaço tridimensional, retornaria à figura; Mondrian, em Nova York, inicia com o "Broadway Boogie-Woogie" e o "Victory Boggie-Woogie" a dissolução de suas estruturas verticais e horizontais. No Brasil, bem mais tarde, repetiu-se o desafio já abandonado.
Mas a arte do Terceiro Mundo não repete os passos da arte herdada do primeiro mundo, mesmo porque isso é impossível. Assim, o neoconcretismo brasileiro deu ao antigo problema uma resposta nova e bem mais radical que a de seus antecessores. Lygia e Oiticica terminaram por romper os limites da linguagem da arte e retrocederem à experiência meramente sensorial, menos visual que táctil, olfativa e auditiva. Amilcar fez uma opção diferente, que preservou o compromisso com o objeto visual no espaço real.
Essa é uma diferença fundamental, reveladora da atitude de Amilcar em diante da arte que -ao contrário da de Lygia e Oiticica, experimentalista- é irredutivelmente ética. O que há de comum entre eles é a rejeição da arte como construção do imaginário. Lygia e Hélio, o máximo que se permitem de afastamento do real, é o mergulho na noite das sensações; Amilcar, objetivo e racionalista, concebia a beleza como resultado da exatidão formal e da limitação dos recursos expressivos, entendida como exigência ética. Por isso, afirmava: "O que é certo é justo e o que é justo é belo".
Amilcar pertence, portanto, à família dos artistas que seguiram a lição da vanguarda racionalista; despojou sua arte de todo e qualquer romantismo, de quase toda a subjetividade, para, sem concessões à efusão emocional, fazer dela uma construção impessoal, produto das possibilidades objetivas do material que utilizava.


Ferreira Gullar é poeta e crítico, autor, entre outros livros, de "Relâmpagos" (Cosac & Naify, no prelo).

Ferreira Gullar é poeta, escritor e crítico de arte.
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