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Laura de Mello e Souza - 11 - Fevereiro de 1996
Artes na província
Foto do(a) autor(a) Laura de Mello e Souza

Artes na província

 

LAURA DE MELLO E SOUZA

Noites Circenses: Espetáculos de Circo e Teatro em Minas Gerais no Século 19
Regina Horta Duarte
Unicamp, 279 págs.
R$ 26,00

Minas urbanizou-se rápida e intensamente durante a primeira metade do século 18, tecendo-se assim a malha sobre que se apoiou a floração mais brilhante e original das letras e das artes na América portuguesa de então. No século seguinte, já no contexto da nação independente, a economia se redefiniu, generalizando-se a agricultura e o pastoreio mesmo onde antes se catara ouro. Mas as vilas e os arraiais setecentistas ficaram, constituindo um público certo para os grupos teatrais e circenses que perambulassem pelo país.
Regina Horta Duarte analisa justamente o papel desses espetáculos na província de Minas durante o século 19. Trata-se de um trabalho excepcionalmente bem escrito e muito cativante. Mas se o título é mais alusivo e metafórico do que fiel ao objeto estudado -nem sempre tais espetáculos eram noturnos, e muitos deles não eram de circo-, também o conteúdo antes sugere do que esmiúça. Sobre teatro em Minas, só se tinha, salvo engano, as páginas de Afonso Ávila ("O Teatro em Minas Gerais: séculos 18 e 19", Ouro Preto, Secretaria Municipal de Turismo e Cultura, 1978), guia de pesquisa imprescindível, mas sem maior pretensão analítica, diferindo, portanto, dos estudos basilares do mesmo autor sobre o barroco e a sociedade mineira. Dessa forma, não era pequena a tarefa da autora e em termos gerais deve-se dizer que se saiu bem. Com anexos constituídos por relações de peças teatrais de apresentação comprovada em Minas e por tentativas de reconstituição do trajeto cumprido pelos circos no território da província, este livro será ponto de referência obrigatório para os estudiosos da história do teatro.
Além disso, a problemática central é muito interessante, e esboçada com inteligência e sensibilidade. Os poderes constituídos da administração e governo empenhavam-se em normatizar a população movediça das Minas, que, no século anterior, se deslocara atrás de ouro, no dizer do jesuíta Antonil, como os filhos de Israel pelo deserto. Empenhavam-se ainda na feitura de mapas e na abertura de caminhos, em "esquadrinhamentos" do território que os grupos mambembes e os ciganos, sempre muito presentes na região, teimavam em fragmentar. Houve, portanto, forte tensão entre tais intuitos -dar base sedentária e ordenada à vida da província- e a desordem boêmia dos artistas ambulantes. Ora, ciganos e mambembes criaram uma estrutura sobre a qual se instauraria a andança das companhias teatrais e dos circos; mas o contexto, já adiantado o século 19, seria outro: não dominaria mais a desconfiança e o preconceito ante os atores, mas certa reverência pelo seu cosmopolitismo, e até mesmo certa consciência do seu papel civilizador. Apesar disso, as peças teatrais nunca alcançaram a popularidade dos circos, estes sim as grandes estrelas do entretenimento público de então.
Reconhecidas as qualidades do trabalho, sobram os reparos. Há problemas na abordagem histórica do objeto, embaçando-se o foco do específico. O grande esforço normatizador das autoridades administrativas data da segunda metade do século 18, e em parte por isso explodiria a Inconfidência. Nunca, como então, se rasgaram caminhos, se plantaram vigias e postos de controle nas passagens dos rios e nas gargantas das montanhas, se bateram os matos contra quilombolas, se desterraram vadios e facinorosos para os presídios limítrofes, se contrataram técnicos -como José Joaquim da Rocha- para desenhar os limites e os atributos do território. Os "esquadrinhamentos" de que fala a autora surgiram, na sua forma traumática, mais nessa época do que do século seguinte, quando já faziam parte de uma "longa duração" e, nessa qualidade, se mostravam menos capazes de gerar tensões -ou pelo menos, se o faziam, há que reconhecer que a forma deveria ser menos virulenta e impactante do que o fora cerca de cem anos antes.
Sobram indagações sobre a platéia mineira: no que diferia das demais? Havia gostos específicos, capazes de nortear a escolha de repertórios, ou, Brasil afora, era tudo a mesma coisa? Afloram paradoxos aparentes, que ficam sem resposta: por que tanto sucesso de Dennery e de sua "A Cabana do Pai Tomás", peça de que, em 1884, se aplaudiu "freneticamente cada fala defensora da liberdade dos escravos, interrompendo a apresentação a todo momento" (pág. 148) se, conforme os estudos de Roberto Borges Martins, a província era então o maior complexo escravista do mundo?
Sobram igualmente indagações acerca dos atores que viajavam por Minas: o que pensavam daquele público? Como se fazia a viagem, como se venciam as serras mineiras -acidentes que, para os circos e sua parafernália, deveriam ser particularmente complicados, numa época de transportes ainda difíceis? O que os levava à província interiorana, longe do litoral: o prazer das aventuras, a esperança de um público seguro e numeroso? Será que este reagia da mesma forma que outros, do interior também, mas menos afeitos à sociabilidade urbana? Preocupada em criar caracterizações e tipologias -é nesta forma que aparecem os capítulos ("Saltimbancos", "Civilizadores", "Bárbaros") e seus subtítulos ("Vagas", "Esquadrinhamentos", "Fragmentações", "Cenas", "Nacionalizações", "Risos e Surpresas", "Lágrimas e Suspiros"), o que não deixa de ser interessante e engenhoso-, a autora dá o sentido geral da questão, mas muitas vezes perde a nuança. Taxionomia e análise nem sempre são compatíveis.
Há, por fim, uma questão de método. A documentação consultada é abundante e heterogênea: memórias, como a clássica, de Ferreira de Resende; viajantes que andaram por Minas; obras de teatro e de crítica; mas sobretudo jornais, uma quantidade deles, dos importantes aos editados nas cidadezinhas mais distantes. No entanto, há passagens repetitivas, histórias que aparecem mais de uma vez, sugerindo que não se exploraram devidamente as potencialidades das fontes. A meu ver, tal se deveu a uma certa obstinação em ajustar o universo empírico e algumas matrizes teóricas talvez um tanto inadequadas ao objeto. Deleuze e Guattari, por exemplo, não precisariam ser tão invocados na análise das relações entre "nomadismo" e sedentarização. Há ainda uma ponta de fascínio por formulações mais retóricas, como as que marcaram época na história francesa das mentalidades, bastante hipnotizada por Michel Foucault.
Nada disso chega a comprometer o trabalho, que tem qualidade e leitura muito agradável. Bola preta, mesmo, só para a revisão do livro: crases fora do lugar, notas de rodapé desaparecidas e, invariavelmente, erros nas citações em francês. 

Laura de Mello e Souza é professora do departamento de história da USP.
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