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Luiz Armando Bagolin - 61 - Abril de 2000
A ciência do arquiteto
Foto do(a) autor(a) Luiz Armando Bagolin

Obra clássica do século 1º a.C. é traduzida

A ciência do arquiteto


LUIZ ARMANDO BAGOLIN

Deve consternar o leitor o fato de a primeira tradução integral para a língua portuguesa dos célebres "Dez Livros sobre Arquitetura" ou simplesmente "Da Arquitetura", de Vitrúvio, escritos em meados do século 1º a.C., chegar às estantes com falhas e um exíguo corpo de notas explicativas. É preciso reconhecer que traduzir os textos vitruvianos, recolhidos de vários manuscritos (uma vez que o texto autógrafo se perdeu) não é tarefa fácil. Os parágrafos são, muitas vezes, lacônicos, fragmentários. O texto foi escrito rudemente no gênero médio (instrutivo) e é muito diferente, quanto à elocução, de obras como a de Varrão, "De Lingua Latina", por exemplo.
Leon Battista Alberti, em "De Re Aedificatoria", escrito na segunda metade do século 15, censurou Vitrúvio por tais imperfeições, pois, aparentemente, ele escreveu "numa linguagem que não é latina nem grega", dificultando a sua compreensão pelos modernos. Tais dificuldades poderiam redimir qualquer tentativa de tradução desse material, tornando-a uma escolha necessária entre outras inúmeras possibilidades que se abrem ante os olhos do tradutor. Mas é exatamente dessa falta de abertura que se ressente a atual publicação, pois parece admitir um trânsito seguro e unívoco entre categorias de pensamento de épocas distintas, não assinalando ao leitor nem as imperfeições nem os significados particulares expressos no texto vitruviano, muitas vezes irrecuperáveis para os nosso dias.
Peço aqui licença, a título de contribuição, para apontar duas passagens que poderiam ser melhor elaboradas nessa tradução. Em Vitrúvio, 1º,1º,1 (sigo a tradução francesa "Les Belles Lettres", Paris, 1990), o texto diz: "A ciência do arquiteto é ornada de muitas disciplinas e várias erudições, cujo juízo aprova toda obra concluída com outras artes. Ela nasce de indústria e de raciocínio". Na tradução atual temos o seguinte:"A ciência do arquiteto é ornada por muitos conhecimentos e saberes variados, pelos critérios da qual são julgadas todas as obras das demais artes. Ela nasce da prática e da teoria".

Indústria e raciocínio
Ora, se na primeira parte do parágrafo verificamos a tomada de partido por uma não literalidade na tradução, talvez, a fim de tornar a leitura do texto em português mais agradável ao leitor (é importante observar que as tópicas copiosidade/ muitos/ e variedade/variados/ foram mantidas); na segunda parte, no entanto, o tradutor falha quanto à compreensão de categorias semânticas específicas no texto vitruviano. Assim, "indústria" e "raciocínio" anacronizam-se em "prática" e "teoria", termos por demais ideologizados em nossa época.
Em um outro trecho, o tradutor nos traz o seguinte: "As imagens da disposição, que em grego chamam-se "ideai" são estas: planta, elevação e perspectiva. Planta é o uso metricamente definido da régua e do compasso(...). Elevação, por sua vez, é a imagem da fachada metricamente representada segundo o partido da futura obra, assim como perspectiva é o esboço da fachada e das laterais em fuga, concorrendo todas as suas linhas para o ponto central de uma circunferência".
Em primeiro lugar, "planta", "elevação" e "perspectiva" não servem como traduções absolutas, tendo-se em vista as regras de representação gráfico-arquitetônica modernas, de "ichnographia", "orthografia" e "scaenographia". Além disso, o tradutor perde a oportunidade de explicar como "perspectiva", termo inexistente à época de Vitrúvio, poderia ser apresentado supostamente como conceito derivado de "cenografia". Também não refere a utilização de "imagem pintada ou colorida segundo cálculos ou razões" na apresentação de "ortografia" (nem sequer em nota o suposto aparecimento de cor é mencionado), tomando apenas a expressão "metricamente representados" como suficiente. E "cenografia" não é "esboço de fachada e laterais em fuga" (o que nos levaria a afirmar a existência de perspectiva de ponto cêntrico, como a utilizada por Brunelleschi, no tempo de Vitrúvio), mas o "traçado" das mesmas em "abscendências" (recuos) "que correspondem a todas as linhas que estão no entorno do centro".
Não desejo e nem posso me alongar muito nestas considerações, mas seria muito interessante que a atual tradução pudesse ser cuidadosamente revisada e o corpo de notas ampliado, a exemplo da edição francesa aqui citada.
Quanto à apresentação da tradução, feita pelo professor Júlio Roberto Katinsky, devo dizer que, apesar da preciosa colaboração no que concerne ao esboço de uma fortuna do texto vitruviano, suas idéias acerca da inserção de Vitrúvio no quadro social de sua época e sobre o romano como uma espécie de precursor do "ideário renascentista" causam estranheza. Como também é estranha a identificação do texto vitruviano com os gêneros "tratado" e "poesia" ou, de qualquer modo, como transmissor sistematizado de "tecnologia antiga" oposta, porquanto interessada em descrições ordenadas de práticas de trabalho, à "tecnologia moderna", para a qual consentiu a crítica moderna com o nome de Filippo Brunelleschi.
O professor Katinsky parece corroborar, em sua apresentação, a crítica (tenha-se em mente Argan, Zevi e outros) segundo a qual Brunelleschi é entendido como ponto de ruptura fatual e, assim, despreza as tópicas circulantes à época de Alberti, Manetti e Vasari, dirigidas, em particular, ao louvor dos artífices florentinos. Para Katinsky, se atividades outrora consideradas menores, ou "vis", foram alçadas à categoria de "nobres" à época de Brunelleschi, o encarecimento das mesmas no tempo de Vitrúvio se dá pela retórica, "thécne" por excelência, conforme diz, pois compreensiva de todas as "thécnes" particulares que são fundamentos da cidade. Em seu texto, contudo, Vitrúvio restringe as ciências partícipes do gênero médio, "mediocres scientias", nas quais devem ser instruídos os arquitetos, louvados, exatamente por deterem erudição parcimoniosa nessas muitas artes.
Katinsky lança-se, então, à decifração da intenção subjacente nos escritos vitruvianos. A própria recolha de comentários sobre "tecnologia antiga" por parte de Vitrúvio permite sabê-la: o arquiteto está, antes de tudo, preocupado com a sobrevivência da Pólis. O texto latino, portanto, se endereçaria a poderosos, governantes e construtores ciosos pelo bem-estar da cidade. Para Katinsky, tal intenção poderia ser revalidada pela sociedade atual desde que a mesma se queira organizada politicamente também com o auxílio dos conhecimentos do arquiteto. Ou como diz: "O que subsiste de seu livro, ainda hoje, é o desafio proposto: aceitaremos como legítima a proposição da formação de arquitetos de conhecimento incompleto, necessário exclusivamente a atender o momento e o lugar, ou reafirmamos a formação técnica integrada na visão maior da República, participando criativamente do destino comum?". Resta saber: a que república o professor se refere?



Da Arquitetura
Marco Vitrúvio Polião
Apresentação: Júlio Roberto Katinsky
Tradução e notas: Marco Aurélio Lagonegro
Hucitec (tel. 0/xx/11/2409318)
248 págs., R$ 29,00



Luiz Armando Bagolin é artista plástico.

Luiz Armando Bagolin é professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
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