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Sérgio Adorno - 81 - Janeiro de 2002
A ciência da tortura
Detento descobre a literatura na prisão
Foto do(a) autor(a) Sérgio Adorno

Detento descobre a literatura na prisão

A ciência da tortura

Memórias de um Sobrevivente
Luiz Alberto Mendes
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3846-0801)
478 págs., R$ 32,00

SERGIO ADORNO

Está se tornando habitual que "delinquentes" ou "ex-delinquentes", presos ou egressos de estabelecimentos prisionais, escrevam autobiografias. Nestas, relatam suas histórias pessoais, perfis de carreira moral nos crimes, contatos com o aparelho repressor, amarguras, sofrimentos, humilhações, privações, violências a que foram submetidos ao longo de sua existência. Os relatos desfilam nomes, lugares, situações, cenários próprios aos bas-fonds da sociedade. Descrevem aventuras, ousadias, vidas compartilhadas na companhia dos sem lei. Listam crimes, nomeiam seus algozes, muitos dos quais agentes da ordem destituídos de escrúpulos, corruptos, igualmente violentos.
Sob essa perspectiva, "Memórias de um Sobrevivente" não difere dos demais relatos. Nele há pouco que não se saiba. Não obstante "tudo o que se sabe" é algo sobejamente desconhecido do grande público, a sociedade informada dos cidadãos que se encontram do lado de cá das grades. De fato, dizem que a história não se repete. Aqui não é o caso.
Como alguns -que parecem muitos- jovens de sua classe social, o autor, nascido no seio de uma família pobre, habitante do bairro paulistano Vila Maria baixa (cerca de 50 anos atrás moradia regular de membros das classes operárias), abandona sua casa aos 12 anos e inicia uma carreira de crimes. Em parte, estimulado por conflitos familiares e domésticos, nutridos pelo pai que (embora trabalhador, em geral desempregado e alcoolizado) o espancava regularmente diante de uma mãe (trabalhadora, honesta) que a tudo assistia impassível porque impotente. Em parte, atraído pelas luzes e cores de uma cidade, São Paulo no início dos anos 60, que se desenvolvia freneticamente na direção de uma megalópole.
Daí por diante, contam-se crimes; revela-se o entra-e-sai das agências de controle social, aparentemente destituídas de finalidades sociais; deixa-se entrever a construção de identidades virtuais já que a real se perdeu nas esquinas e nos registros policiais; se descreve o caráter fortuito das rotinas da delinquência, sempre a mesma: furto, inserção em quadrilhas, roubo, partilha, gastos incontáveis, mulheres, drogas, evolução para crimes cada mais violentos, inclusive homicídio, fugas, encarceramento. O círculo sempre se repetindo, como se encerrado no circuito de um destino inexorável e inquebrantável. Tudo seria previsível não fosse o encontro do autor com a literatura, ponto de inflexão que torna o livro distinto dos demais.

Autobiografia pungente
"Memórias de um Sobrevivente" não se detém na mesmice. Trata-se, antes de tudo, de autobiografia pungente, sobre a dor e o sofrimento, sobre a angústia de viver entre parênteses nos estreitos limites da desordem social e urbana, eivada de reflexão pessoal e de imagens literárias. Em primeiro lugar, há que se destacar uma certa nostalgia que percorre o relato através da geografia de uma São Paulo que não mais existe: a da Galeria Metrópole, tradicional lugar de interseção dos distintos escapados da ordem, bandidos, prostitutas, pequenos traficantes, desocupados gerais, jovens moderninhos de classe média revoltados com suas famílias, espaço que se estendia da avenida São Luís, ao lado da Biblioteca Municipal, passando pela Praça da República, avenidas São João e Rio Branco, o bairro de Santa Ifigênia e alcançando a estação da Luz. Àquela época, um espaço de profusão de emoções e de sentimentos, de sexo abundante, de encontros ocasionais e duradouros, de laços que se forjam nas ruas e se formalizam no interior das instituições de controle social.
Não apenas a cidade parece próxima, apesar de esquecida no tempo. Para leitores contumazes da crônica policial e para aqueles que se dedicam, há anos, aos estudos sobre violência, crime e justiça, não há como não se deleitar com a galeria de tipos humanos familiares: o assistente social generoso, do antigo Recolhimento Provisório de Menores, o famigerado RPM, que procura a seu modo restituir um pouco de humanidade àqueles que parecem moralmente excluídos da comunidade humana; os delegados durões que fizeram escola na polícia civil; um ex-diretor da Casa de Detenção que diariamente, após a chegada do bonde de presos, proferia rotineiras preleções morais contra a delinquência e o crime às quais todos deveriam se resignar.
Mas é a partir do encontro com a literatura que o livro ganha em densidade. Cansado de tantas aventuras, de intercalar a vivência dominada no interior das instituições fechadas, que vez ou outra lhe permitia se concentrar no trabalho, com as aventuras e fugas espetaculares que a liberdade provisória lhe proporcionava, passou por acaso a frequentar um admirável mundo novo. Em pouco tempo, estava devorando livros, aprendera a amá-los, a colecioná-los, a recompô-los quando destruídos pela fúria das operações "pente fino" nas celas -nas palavras do autor, "a cultura, na prisão, era sempre a primeira a sofrer agressões".
Leu parte da obra de Dostoiévski, Tolstói, Górki, Steinbeck, Cronin, Scott Fitzgerald, Maupassant, Walter Scott, Stendhal, Balzac, além dos clássicos da literatura brasileira. Aproximou-se de companheiros que também desfrutavam dos mesmos hábitos. Compartilhou o gosto pela filosofia com um companheiro que dispunha da coleção completa, primeira edição, de "Os Pensadores". A aventura agora era outra: viajou de Aristóteles a Merleau-Ponty. O resultado não podia ser outro: afastou-se progressivamente do mundo do crime, deixou pouco a pouco de ser o sujeito insensível, exasperado, voltado para a satisfação imediata das vontades e das paixões. Tornou-se mais introspectivo, reflexivo, mais tolerante para com as adversidades da vida e sobretudo mais compreensivo com relação ao mundo social em seu entorno.
Certamente, é o encontro com a literatura que lhe facultará os comentários surpreendentes que vão aparecendo, inicialmente de modo tímido, mais frequentes à medida que se aproxima o desfecho da autobiografia. Não há como permanecer indiferente às sucessivas aproximações entre a lógica hierárquica das prisões e aquela que vige na sociedade mais ampla. À aspereza com que descreve a resistência à tortura e o enfrentamento dos suplícios, resistência qualificada como ciência dos sobreviventes. Aliás, é nos inúmeros relatos de tortura que o livro ganha em intensidade dramática ("um bom torturador nunca é emotivo"). À jocosidade com que se refere à polícia e aos policiais que facilitavam a ação dos punguistas toda a vez que garoava na cidade ("a polícia não gosta de tomar chuva e se esconde"). À sensibilidade de suas observações sociais quando descobre cenários de pobreza nas fronteiras da cidade ainda mais dramáticos ("sempre tivera a curiosidade de saber como viveriam as pessoas mais pobres que eu e meus pais"). Sobrevivente da memória, a prisão somente poderia ter violentado sua natureza.


Sergio Adorno é professor do departamento de sociologia da USP.

Sérgio Adorno é professor do departamento de sociologia da USP.
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