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Otília Arantes - 13 - Abril de 1996
A boa causa de Lúcio Costa
Foto do(a) autor(a) Otília Arantes

A boa causa de Lúcio Costa

 

OTÍLIA BEATRIZ FIORI ARANTES

Por ocasião dos 80 anos do inventor de Brasília, Carlos Drummond de Andrade, que com ele trabalhara durante mais de uma década num canto da sala do Serviço do Patrimônio, voltou a evocar a legendária discrição de seu ilustre vizinho de corredor: "Não tinha nem de leve ar de importante, e parecia mesmo querer se ocultar de todos e de tudo, até do nome de Lúcio Costa" sob um esmaecido L. C. apenas rabiscado em seus pareceres. O que teria pois levado este inimigo de discursos, medalhas e foguetes, a publicar -é verdade que só pela altura dos gloriosos e até então sempre discretos 93 anos-, esta monumental compilação de 600 páginas em grande formato, ao longo das quais comparece fartamente retratado e chamado pelo próprio nome? Segundo ele mesmo, em entrevista recente, decisão extrema, tomada por temer interpretações equivocadas de seus atos. Resolveu portanto se antecipar, sentindo que havia chegado o momento de dar o seu recado. Mas não bastava o recado das obras, não muitas, é verdade, porém decisivas para a virada na origem da moderna arquitetura brasileira? A um passo da eternidade -como dá a entender a legenda de uma de suas fotos recentes- é natural que tenha sentido necessidade de deixar a casa arrumada, cada coisa no seu lugar, a vida enfim passada a limpo. Último risco de que resultou este belo livro, confirmando o que há muito já se sabe: que ninguém na profissão se exprimiu tão bem a respeito do que fazia. Aliás, quanto a esta sempre louvada qualidade da prosa, que até hoje surpreende, talvez não seja demais lembrar que ela foi se cristalizando na escola viva de Bandeira e Drummond dos anos 30 em diante, longe do desalinho turbulento dos primeiros tempos modernistas, e que afinal ela simplesmente tem a dimensão de um alto personagem (talvez o derradeiro em vida) do período heróico da instalação da arte moderna no Brasil. Nada disso todavia explica o milagre desta prosa de ensaio escorrida de uma prancheta, nem estou querendo insinuar que o escrever bem seja um fim em si mesmo, muito menos um complemento de bom tom, sem prejuízo de vir a ser uma atividade compensatória. De qualquer modo, durante os momentos decisivos da formação da arquitetura moderna no Brasil, o dr. Lúcio demonstrou que prancheta e escrita podiam e deviam convergir num mesmo ideal de vida e estilo -favorecido sem dúvida por um instante raro da vida nacional em que pela carga de um "risco" e pela exigência de construção literária de um argumento circulava uma energia social inédita. Quem sabe se algo não tem a ver com a extinção daquele antigo sentimento brasileiro do mundo este registro autobiográfico de agora. O livro é de qualquer modo enigmático, não é fácil decifrá-lo, sobretudo porque se trata de um enigma sobreposto a outro, o próprio Lúcio Costa, um mestre do "understatement". E como tal domina a técnica literária da supressão -sair de cena precocemente (o ostracismo voluntário a que se refere) pode ter sido uma variante dela. Não seria descabido supor que se deva a este princípio moderno por excelência a composição original do livro. E também a sensação de falta que por vezes acompanha a leitura -paradoxal, pois parece derivar do sentimento oposto, de excesso e redundância. Quanto ao básico de uma obra de vida inteira que cedo se definiu, este registro derradeiro pouco acrescenta, apesar dos inúmeros adendos e comentários recentes que vão pontuando os textos, a não ser o sentimento difuso, a cada volta do roteiro de que algo a esclarecer ainda ficou para trás e assim mesmo escapa a cada nova tentativa, que invariavelmente parece retornar ao mesmo ponto. Numa palavra, o material recolhido é rico e variado, contudo ficamos na mesma. À primeira vista pelo menos, por uma razão muito simples: é que, na condição legítima de pioneiro, Lúcio Costa a bem dizer passou boa parte da vida repassando-a a limpo. Na forma de entrevistas, depoimentos, cartas de esclarecimento etc., desde cedo deu início à biografia da obra em andamento. Ainda nos anos 30 aparecem os primeiros balanços, recapitulações, periodizações etc. De sorte que fazia tempo o campo já estava lavrado, a casa limpa, a mesa posta, para voltar a falar como Manuel Bandeira saudando a iniludível. Por que uma última demão, sem prejuízo da documentação necessária? As compilações à revelia já não teriam dado conta? Qual afinal o recado de Lúcio Costa?
Nada mais justo que o primeiro brasileiro a fornecer por extenso as razões da Nova Arquitetura tenha se encarregado do arremate, construindo-lhe o memorial, quem sabe o verdadeiro, no final de contas. De qualquer modo um ciclo completou-se, ainda que no fecho deparemos, na penúltima página, com uma inusitada peteca luminosa e leve, pousada sobre a mesa à espera de um gesto que libere sua carga latente. Alegoria saída de uma página de Pascal? Ou exortação in extremis? Isto é: a "garota bem esperta, de cara lavada e perna fina", como lhe aparecia a despachada Nova Construção nos anos 30, não deixa cair a peteca? Vista de um lado, cabeçadas e trancos do destino, inocentes na sua inconsciência; por outro, pertinácia, confiança obstinada na sobrevida do Movimento Moderno, apesar de todos os pesares. Voto piedoso ou não, uma imagem de reconciliação entre caráter e destino, encaixe harmonioso entre vida nacional e escolhas pessoais.
Ou não? Como disse, em matéria de despiste, estamos diante de um virtuose. Melhor então passar do enigma ao comentário, passar do livro desconcertante ao esquema que o alimenta à força de repetição da mesma história, mas onde, para o leitor atento, pequenos deslocamentos vão ocorrendo de modo a ir incorporando e justificando a forma que aos poucos ia assumindo a moderna arquitetura brasileira -não mais donzela, e bem exibida. Estou me referindo ao esquema da formação desta arquitetura. Da arquitetura que se pretendia reduzida ao "mínimo", àquela cheia de "dengue" e "graça", da qual a Pampulha é o melhor exemplo, na opinião do próprio Mestre Lúcio, quando interpelado por Geraldo Ferraz ou respondendo a Max Bill. Talvez a chave do enigma esteja aí: a "boa causa" (perdida?) da arquitetura nacional, aquela mesma que, segundo diz, decidiu-o a levar o jovem Niemeyer a Nova York para colaborar no projeto do Pavilhão que deu início à nossa fama lá fora (estávamos em 1938).
Um projeto de tal porte, como o de uma arquitetura moderna exemplar num país ainda mal-acabado, não podia restringir-se a fatos isolados e sem futuro, em geral de pura imitação -o que se poderia esperar, por exemplo, de uma intervenção de tipo "primeira casa modernista" senão outras iniciativas pioneiras desemparceiradas? (Como explica em carta-depoimento de 1948 a Geraldo Ferraz, feitas todas as ressalvas quanto ao apreço que sempre dedicou à obra de seu grande amigo e ex-sócio, Gregori Warchawchik). Ser moderno, pelo contrário, implicava na vontade consciente de suplantar este momento indeciso de manifestações vanguardistas avulsas. Essa cristalização veio com a Revolução de 30. Em menos de dez anos formou-se a Arquitetura Moderna Brasileira. Ato contínuo, quer dizer, mais ou menos por volta da segunda metade dos anos 40, seu principal protagonista e formulador principiou a contar num sem número de variantes o que também se poderia chamar de história dos brasileiros no seu desejo de ter uma arquitetura coerentemente moderna. A última versão vem a ser este registro autorizado de uma "vivência".
Recapitulando seu itinerário, Lúcio Costa, logo de início, na apresentação do livro, enumera os passos de sua carreira começando com sua breve passagem pela direção da Enba e o Salão de 31, deixando para trás os "equívocos" juvenis do período "eclético-acadêmico" da arquitetura neocolonial. Como exigia o poeta, Lúcio Costa tornou-se absolutamente moderno, porém sem nunca ter sido "modernista". Por assim dizer saltou uma etapa -o que muda muita coisa. Não por acaso já implicava com a própria palavra, que achava perigosamente pernóstica. E se fosse mais um complexo colonial, outro mito compensatório, o "complexo modernista" como chegou a dizer certa vez, ainda nos anos 40? Sabemos que não era bem assim e que inclusive se deve aos modernistas históricos a reversão deste complexo atávico, uma das grandes manobras de nossa vida mental, espécie de cura psicanalítica em escala nacional a que Antonio Candido deu o nome de "desrecalque localista". Mas talvez esse descompasso inicial o tivesse colocado justamente em posição mais favorável quando da necessidade de criar uma Arquitetura Moderna Brasileira -os complexos coloniais justamente já superados.
Moderno sem ser modernista, começa portanto por esta circunstância nada fortuita, à vista dos desdobramentos posteriores, a nossa Arquitetura Nova, sob o comando de Lúcio Costa que, ao tomar o bonde andando, pegou diretamente o modernismo (agora sem aspas) num momento construtivo, por assim dizer iluminista, de organização institucional da cultura e seus correlatos, e que a rigor pouco ou nada mais tinha a ver com o espírito de libertinagem estético-social da fase anterior. Em contrapartida deste aparente avanço, ao menos se tivermos em mente algo como a modernização do Brasil, o desrecalque agora, sem a memória ativa da etapa anterior, perdia o gume e voltava ao programa simplesmente afirmativo de atualização necessária, por sinal comandada por um Estado forte e empreendedor. A prova dos nove doravante nada punha em cheque, o futuro edifício-sede do Ministério de Educação viria apenas provar que o país poderia ter uma arquitetura de primeira linha tão boa, ou até melhor, quanto a dos países centrais, que aliás neste setor ainda estavam devendo uma prova cabal, como o próprio Le Corbusier sabia muito bem, "et pour cause".
A contradição básica deste projeto de modernidade é que, na ausência daquela carga satírica negativa dos modernistas, ficaria cada vez mais difícil imaginar a ordem social alternativa à qual a nova técnica construtiva em princípio deveria pertencer, e por conseguinte cada vez mais fácil descolar do fundamento material e social que a devia sustentar. Havia, em contrapartida, vantagens consideráveis nesta entrada tardia em cena, que devem aliás ter pesado, e muito, seja dito agora a seu favor, na hora de vincular as razões da nova arquitetura à consciência dramática do subdesenvolvimento que despertaria depois da guerra, especialmente ao projetar a nova capital. É verdade que ao fim e ao cabo para pôr novos mitos no lugar do antigo. Mas não se pode apagar sem mais a diferença.
A história exemplar que Lúcio Costa passou então a contar poderia ser assim resumida, o quanto possível nas suas mesmas palavras. A tarefa de implantar, num meio alternadamente desinteressado ou hostil, a nova maneira de conceber, projetar e construir, o processo de renovação já esboçado aqui e ali individualmente começou enfim a tomar pé e organizar-se quando, dispensando intermediários e franco-atiradores, estabeleceu-se um vínculo direto com as fontes originais do movimento mundial, isto é, quando frutificaram as sementes autênticas aqui plantadas em pessoa por Le Corbusier em 1936 (graças à própria iniciativa de Lúcio Costa, que aliás nunca deixou de atribuir-lhe os créditos -do "risco" original do Ministério de Educação às idéias básicas que inspiraram Brasília). Deu-se então o "milagre" que principiou a desafiar a curiosidade perplexa de arquitetos e críticos europeus e americanos, exatos 12 anos depois da primeira casa modernista brasileira, experimento sem maiores consequências, ao contrário do que sucederia ao milagre em questão, o ministério e sua prole imediata, definindo o sentido geral dos acontecimentos e atestando o alto grau de consciência e aptidão já alcançados àquela altura: primeiro, os prédios projetados e construídos durante o longo e acidentado transcurso das obras desse edifício inaugural; logo a seguir o Pavilhão de Nova York; finalmente o conjunto da Pampulha. Assim, das manifestações ao sistema, menos de duas décadas -um aparato de fato impressionante, sobretudo pela perícia técnica demonstrada em tão pouco tempo de ensaio geral.
Sem dúvida, a arquitetura moderna no Brasil "deu certo" (como repetiu inúmeras vezes Lúcio Costa, especialmente ao defender Brasília), mas seguramente não pelas "razões" alegadas pelo narrador, de resto interessado. Aliás, o problema começa justamente aí: no retumbante acerto desta maioridade precoce. Afinal, num país onde tudo está a bem dizer por fazer (como reconhecia Lúcio Costa), como implantar uma arquitetura diretamente vinculada ao progresso técnico? O desencontro entre doutrina e pressuposto social é de fato a regra nestes casos de enxerto, à qual nem Lúcio Costa, nem o que ocorreu aqui fazem exceção. Só que neste caso particular, não obstante a distância real entre centro avançado e periferia retardatária, deu-se uma notável inversão de papéis, convertendo o descompasso num grande acerto, pois foi a distorção da cópia que revelou a verdade profunda do original. O viés estético enaltecido como marca nacional expunha afinal à luz (tropical) do dia o formalismo integral -a abstração mesma do espaço ordenado pelo capital- contrabandeado no fundo falso do Movimento Moderno.
Surpresas desagradáveis que se devem creditar ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Sendo funcional e bonita de ver na franja colonial do sistema, onde por princípio não poderia jamais ter dado certo, a Nova Construção brasileira e sua enorme carga simbólica, muito mais institucional e monumental do que propriamente social, encarregou-se, ironicamente, ao triunfar na periferia, de desnudar o Movimento Moderno. Ou seja, sendo um sucesso de público e formação, a arquitetura brasileira moderna vem correndo desde o berço por uma pista inexistente, e não há remédio que a ponha no bom caminho, simplesmente porque ele não existe, e de cuja inexistência aliás a sua marcha consagradora vem a ser a prova cabal. (Ponto de vista que venho expondo faz algum tempo, verdade que um pouco aos pedaços. Não é o momento de apresentá-lo por extenso. Por agora, apenas o suficiente para fazer justiça ao esquema de Lúcio Costa que, imagino, resulta da consciência -mais ou menos clara, sabe-se lá- dessa reviravolta).
Não é nada improvável que num determinado momento -talvez na virada dos anos 30 para os 40 ou um pouco mais além- tenha começado a germinar o pressentimento funesto de que o triunfo internacional da arquitetura brasileira se devesse à coerência com que o Movimento Moderno fora levado a confessar na periferia o que escamoteara no centro (pelo menos nos tempos heróicos das demonstrações isoladas), a saber (por pouco que se atinasse com a lógica produtiva da grande indústria), que tudo poderia muito bem não passar de um jogo abstrato de formas. O que fazer? Recuar? Afinal, também na arquitetura a tendência histórica do material parecia apontar para o caminho tomado pelos modernos. E era ela justamente, ou o desenvolvimento das técnicas construtivas, que liberava o arquiteto para todo o tipo de inventiva e de virtuosismo no qual nos mostrávamos exímios. Portanto, era preciso ir em frente, mas não rotineiramente, no passo previsível de toda modernização, pois tínhamos o dever de zelar por um sucesso mundial, no qual o país engajara seu futuro.
Ora, a chave do enigma que intrigava quantos se detinham na admiração da moderna arquitetura brasileira estava providencialmente ao alcance da mão e atendia pelo nome de Oscar Niemeyer. A boa causa da arquitetura nacional não poderia ser confiada a melhores mãos, não por acaso prodigiosamente dotadas para o jogo abstrato com as formas. Gênio nacional, artista predestinado e eleito etc., são demasias retóricas de circunstância. O essencial é que, ao arrematar sua história de formação, a um tempo abortada e magistralmente concluída, Lúcio Costa procurou persuadir a todos os interessados -a começar por ele mesmo- que a explicação do milagre devia ser procurada na incrível convergência da "alma nacional", encarnada por exemplo na extraordinária unidade de caráter de nossa arquitetura antiga, com a lição dos modernos, quase como se a Arquitetura Moderna Brasileira tivesse brotado espontaneamente. Ou melhor, por uma espécie de causalidade endógena, já que, num certo sentido, reatávamos com a tradição colonial, embora não apenas para arremedar o passado, graças ao salto, cujo impulso devíamos aos modernos, por cima do postiço interregno burguês.
Último recurso de uma causa perdida, quando já a consciência aguda do drama material do subdesenvolvimento não mais admitia qualquer apelo à extinta ideologia do caráter nacional. Até que um outro colapso a ressuscitasse, e com ela uma nova fase de auto-engano coletivo, agora sob o signo dos regionalismos, multiculturalismos e assemelhados. Possivelmente para não o invocarem nesta comédia de erros, Lúcio Costa, temendo o pior, se antecipou, encerrando o primeiro ato, a um tempo espetacular e dramático, da nossa arquitetura contemporânea -do qual foi não só ator mas autor inconteste-, com este "registro de uma vivência". 

Otília Arantes é professora de estética do departamento de filosofia da USP.
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