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Henrique Fleming - 70 - Janeiro de 2001
A beleza da ciência
Foto do(a) autor(a) Henrique Fleming

A beleza da ciência

 


Richard Dawkins sustenta que as explicações científicas não diminuem a beleza dos fenômenos da natureza



Desvendando o Arco-Íris
Richard Dawkins
Tradução: Rosaura Eichenberg
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
416 págs., R$ 34,50

HENRIQUE FLEMING

O professor Richard Dawkins, zoólogo de formação, hoje professor de compreensão pública da ciência na Universidade de Oxford, Inglaterra, alcançou a fama extramuros (e a sua posição acadêmica atual) mercê do (justo) sucesso de seus livros destinados ao público, principalmente "The Blind Watchmaker" (O Relojoeiro Cego, 1986) e "O Gene Egoísta" (ed. Itatiaia, 1989). Esses livros têm como tema principal a evolução das espécies e, como missão, mostrar que a idéia é, sim, inevitável, mas também plausível. Plausível? Bem, ao menos se aceitarmos que o intervalo de tempo ao longo do qual as espécies evoluíram de uma bactéria até nós é tão imenso que escapa à nossa intuição, que mede o tempo por gerações.
Neste que agora nos ocupa, ele se dedica a combater a idéia de que a ciência, em sua racionalidade, é destituída de beleza e, pior, que a explicação científica de um fenômeno da natureza liquida a beleza que porventura fruíssemos de sua inocente contemplação. O exemplo que inicia e nomeia o livro é o do arco-íris. Em certa noite de dezembro de 1817, o poeta John Keats jantava em boa companhia, com Charles Lamb e Benjamin Haydon, no estúdio deste pintor, e com o poeta maior William Wordsworth. Lamb criticou Haydon por ter pintado Newton, "um sujeito que não acreditava em nada que não fosse tão claro como os três lados de um triângulo". Keats adicionou aos pecados do grande físico o de ter destruído toda a poesia do arco-íris, "reduzindo-o às cores prismáticas".
Wordsworth, que, sobre Newton, escreveria o verso famoso que o via "Voyaging through strange seas of thought, alone" ("Viajando sozinho por estranhos mares de pensamento"), calou. No entanto, sobre o arco-íris, escreveria um de seus mais famosos poemas, aquele em que diz que "The Child is father of the Man" ("A criança é pai do homem"). Mediu o peso da tolice e resolveu calar. Porque estava tudo errado. Newton era um místico, além de, e talvez mais do que, um cientista; Descartes, antes dele, "desvendara" o arco-íris e, finalmente, a emoção com que vemos o arco-íris é filha da emoção com que o vimos pela primeira vez, ainda crianças. Por isso "The Child is father of the Man".
Antes que o leitor desconfie de um livro dedicado a assunto tão vão, deixe-me declarar logo que se trata de uma obra importante, que admite tanto uma leitura "de informação" quanto outra, de profundidade, que levará o leitor a uma sequência de estados que incluirá o assombro, a meditação e, sim, o terror.
Quanto ao arco-íris, deixemo-lo em paz. De Nelson Ascher, filósofo elegante, ouvi que, como poeta, jamais pudera entender como a explicação de uma maravilha pudesse de alguma forma diminuí-la. Quanto à fria ciência e seus gélidos praticantes, basta-me lembrar aqui o "Crisantempo", que Haroldo de Campos modelou em Mário Schenberg, e, a propósito, o próprio Mário Schenberg!

Poesia e encantamento
A ciência é uma fonte de maravilhas, e Dawkins passará o resto do livro, que é de um talhe considerável, a exibi-las para nós. Primeiro, refletindo sobre a razão de não estarmos maravilhados mais frequentemente. Identifica o que chama de "anestésico da familiaridade", que é, afinal, uma necessidade da vida. É preciso cultivar o nosso jardim, disse o filósofo. É neste capítulo que, no afã de despertar-nos do torpor da tal anestesia, chega ao mais puro "terror elegante". Depois, pergunta-se por que existe a grande poesia mística e não a grande poesia científica, entendida literalmente, versos, métrica e tudo. Deplora esse fato e culpa um ou outro poeta, que lhe parecem reunir condições para isso.
É uma causa perdida, opino. A beleza da ciência expressa-se de outra maneira. Cientistas que foram grandes escritores chegaram a ser sublimes, até mesmo se referindo a aspectos da ciência, mas quando atingiram essa sublimidade estavam olhando a ciência como espectadores, esmagados pela grandeza do fato. Pascal, o que melhor combinou os dois talentos, escreve: "Le silence éternel de ces espaces infinis m'éffraye" ("O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora"), mas esta frase maravilhosa não é mais ciência, é comentário. Primo Levi, químico e escritor (e poeta!), em seu "Sistema Periódico", associa virtudes humanas a elementos químicos, o faz com grande poesia e nos faz amar a ciência com isso, mas a beleza que está ali é a dele, não a da ciência.
No entanto, a beleza da ciência existe, a ponto de a procura dela ter sido proposta pelo grande físico Paul Dirac como o verdadeiro método da física teórica. Deixem-me dar um exemplo recente: existem na natureza uns poucos tipos de forças. Uma delas, a gravitacional, foi a primeira a ser identificada, mas resulta ser a mais difícil de pôr em coexistência com as outras. (Para os físicos é inaceitável ter teorias diferentes para os vários tipos de força. Seria deselegante, ou ... feio!) Era, no entanto, tão difícil incluir a gravitação que, em desespero, se resolveu partir para uma tarefa menor, a de unificar todas as forças, exceto a gravitação. Isso foi conseguido de uma forma muito elegante, na chamada teoria das supercordas. Pois bem, uma vez completada essa teoria "provisória", ao investigar detalhadamente suas propriedades, descobriu-se, para grande espanto, que a força gravitacional estava lá! Entrara sem ser convidada! (Tenta-me, mas talvez só a mim, aproximar essa história à dos pássaros, resumida por Borges no "Almotásim": partem em busca do Simurg, o remoto rei dos pássaros. Terríveis provações os esperam e reduzem o seu número a apenas 30. Chegam ao Simurg, que, descobrem, quer dizer "trinta pássaros" e se trata de cada um deles e de seu conjunto.)
Um dos elementos da beleza de uma teoria científica ou, mais geralmente, de um problema científico, é a capacidade de "ressoar" em muitas mentes, isto é, de despertar o interesse de muitos. Ao contrário do que se pensa, os problemas que despertam maior interesse não são aqueles que prometem recompensas de vários tipos, como avanços tecnológicos de aplicação imediata. São problemas, talvez abstratos, que abrem janelas para terrenos insondáveis; são também, em geral, problemas muito antigos. Em tardes sonolentas costumo despertar os meus alunos com o seguinte problema, que ocupou, no passado, sob forma ligeiramente diferente, Leibniz e Newton: considere não o nosso mundo, mas o reflexo dele num espelho. Esta imagem do mundo é, ela mesma, um mundo? E é o nosso? Ou seja, é regida, essa imagem, pelas mesmas leis que o nosso mundo? É, sequer, regida por leis? Durante muito tempo se imaginou que sim. O mundo refletido num espelho era idêntico ao nosso, a menos de trivialidades. Em 1957, os físicos chineses Chen-Ning Yang e Tsung-Dao Lee descobriram que isso era falso. Existem fenômenos cuja reflexão especular não pode ocorrer em nosso mundo (neutrinos estão, em geral, envolvidos). Pois bem, esta descoberta teve uma repercussão pública comparável à da descoberta da penicilina! Por quê? Não sabemos muito bem. Mas há uma consideração perturbadora: aquele mundo do espelho, que não é o nosso, pode existir logicamente. Logo, ...existe? Como Tlön?
A propósito de "ressoar" em muitas mentes, há no livro uma perturbadora descrição da teoria dos "memes", que são fragmentos de informação, como um trecho de uma canção, um mantra, ou aquelas orações católicas curtíssimas chamadas jaculatórias que, uma vez lembradas ou ouvidas, recorrem incessantemente à nossa mente, a ponto de impedir o sono. São, propõe Dawkins, uma forma natural de vírus de software. São terrivelmente contagiosos e causam facilmente uma epidemia. Esse é só um dos aspectos da análise do autor a respeito das semelhanças do nosso pensamento com um sistema hardware-software artificial. Mesmo nesse terreno, bastante trilhado, Dawkins, com o seu raciocínio cuidadoso e seu vasto conhecimento de casos, é extremamente original e verossímil.

O canto dos pássaros
Numa das melhores partes deste ótimo livro, o autor propõe uma nova interpretação do propósito do canto dos pássaros, que seria o de, mais do que transmitir informações à fêmea, manipulá-la, como uma droga. Essa interpretação se estende, naturalmente, à ação que a música tem sobre nós. À luz dessa interpretação, Dawkins relê o famoso "Ode a um Rouxinol", de Keats, e comenta: "Aceita a implicação da analogia da droga, torna-se o poema maravilhosamente real. Não é aviltante para a emoção humana o fato de tentarmos analisá-la e explicá-la, assim como, para um juiz ponderado, o arco-íris não se diminui quando um prisma o decompõe". Ou seja, num passe de mágica, inverte o argumento, mostrando beleza adicional na poesia quando mais conhecimento é levado em conta.
A tradução é decorosa, principalmente levando-se em conta o número de poemas em inglês que permeiam o texto. Todos estão traduzidos, com o original no rodapé. Aponto só dois erros: "jam sandwich" não é sanduíche de presunto; quando Einstein diz "I would feel sorry for the Lord", isto não quer dizer "sentiria muito pelo lorde". Mas a tradutora, não sendo física, não poderia saber que o interlocutor usual de Einstein era Deus!


Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.

Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.
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