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José Henrique Santos - 11 - Fevereiro de 1996
A astúcia suprema
Foto da capa do livro Filosofia da História
Filosofia da História
Autor: Friedrich Hegel
Tradução: Maria Rodrigues e Hans Harden
Editora: Ed. Unb - 373 páginas
Foto do(a) autor(a) José Henrique Santos

A astúcia suprema

JOSÉ HENRIQUE SANTOS 

A obra de Hegel (1770-1831) vem despertando crescente interesse nos estudiosos brasileiros. Depois da "Fenomenologia do Espírito" e da "Enciclopédia das Ciências Filosóficas", traduzidas por Paulo Meneses, temos agora a "Filosofia da História" em competente tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. A essas obras deve seguir-se a "Filosofia do Direito", que está sendo traduzida por Marcos Mller. Façamos votos para que algum estudioso corajoso se atreva a traduzir a difícil "Ciência da Lógica", e teremos completo o corpo principal da obra hegeliana tal como editado em vida do autor.

A "Filosofia da História" de Hegel está para a "Filosofia do Direito" assim como a "Política" de Aristóteles está para a "Ética a Nicômaco". Nos dois casos, trata-se de pôr à prova e de experimentar como os belos ideais da moralidade se comportam na luta pelo poder político e como se materializam, de fato, no melhor governo da cidade. Para Aristóteles, a política é a continuação da ética e deve coroar o trabalho da razão, tornando-a presente na vida do Estado. A discussão clássica sobre qual a melhor constituição define as diversas formas de a razão estar presente na organização do Estado e de seu governo.
A comparação de Hegel com Aristóteles é inevitável se quisermos compreender o grau de afastamento que a política moderna -nesses nossos tempos maquiavélicos- mantém com a ética e o estado racional. O mundo de Hegel é, no entanto, histórico-universal e deixa para trás a pequena cidade-estado grega, que foi sempre o modelo que Aristóteles teve diante dos olhos, apesar de ter sido o preceptor de Alexandre, um desses indivíduos universais e fundador de um império mundial. O caso de Hegel é mais complexo: no tribunal da história, como se comporta o Estado racional, que é a garantia última do direito e da justiça dos cidadãos? Como a razão aparece na história?
A "Filosofia do Direito" (1821) havia-o mostrado: o Estado é obra da razão, é realidade produzida pela vontade livre e soberana que se quer a si mesma. No Estado, o indivíduo encontra sua essência universal realizada de modo concreto. Aqui a vontade livre é soberana; o dever do cidadão é ser membro do Estado e reconhecer-se nele, porque o Estado é a culminância dessa liberdade. Os parágrafos finais da "Filosofia do Direito" colocam no entanto um problema inquietante: a soberania do Estado impõe a todos os cidadãos a mesma lei e a mesma justiça, quer dizer, retira-os do estado de natureza e de violência. Mas que acontece nas relações dos Estados soberanos entre si?
Por definição, mantêm-se eles em estado de natureza e, para dirimir seus conflitos, não cabe apelar à justiça, pois, sendo soberanos, não têm instância superior a que apelar. Vigora, portanto, a lei da guerra nas relações internacionais. Os períodos de paz e felicidade desaparecem diante da violência quase constante. Assim, os belos ideais da imaginação e da justiça "se esfacelam contra o escolho da dura realidade". Este é o ponto de ruptura e ao mesmo tempo de continuidade entre a "Filosofia do Direito" e a História Universal. O Estado, obra da razão, é posto agora no desconcerto dos Estados. A razão continua a vigorar na história universal?
Sim, responde Hegel, mas com suprema astúcia: ela se apodera de povos e indivíduos para realizar seus desígnios e se conhecer a si mesma. A razão é o espírito universal que se particulariza nos diferentes povos e faz progredir, em meio a conflitos incessantes, a consciência da liberdade. O progresso da razão está longe de ser linear e constante. Ela se encontra consigo mesma numa terrível Odisséia, na qual o espírito universal, metamorfoseando-se nos sucessivos espíritos nacionais, passa de um povo a outro, de Oriente a Ocidente, entre lutas, desenganos e sofrimentos sem fim.
A história é um silogismo que vai do mundo oriental antigo (China, Índia, Pérsia, Egito), passa pelo mundo clássico (gregos e romanos) e chega, com a cristandade, aos modernos tempos pós-napoleônicos que Hegel chama de mundo germânico (não no sentido estrito de alemães, mas dos povos nórdicos que abraçaram a Reforma). O sujeito do silogismo é a consciência da liberdade que luta por se realizar a duras penas. Os orientais sabiam que um único é livre, o déspota (juízo singular); os gregos e romanos, que alguns são livres, os cidadãos, mas não os escravos (juízo particular), enquanto nós sabemos que todos os homens -isto é, o homem como homem- são livres (juízo universal).
Os orientais não eram livres porque não o sabiam. Essa afirmação mostra a importância das formas de consciência na luta pela liberdade e fundamenta, ao mesmo tempo, uma educação para a liberdade. Esta surge como uma lenta conquista, e sua efetivação constitui o progresso do espírito e o fim da história. Inicialmente simples forma da consciência subjetiva, a liberdade acaba por fazer-se presente entre os homens. O espírito é paciente (a chamada "paciência do conceito") e percorre incansavelmente cada etapa de sua existência. Gasta milênios em seu percurso, como na história egípcia, mas que são milênios diante da eternidade? O discurso silogístico da história universal é assim obra de Deus, e o sopro do espírito nunca cessa.
Na época de Hegel, a razão como liberdade havia alcançado sua consciência mais alta na Europa reformada. Até aqui, diz ele, chegou o espírito universal ou a consciência da liberdade. Mas ele não pára sua obra. No prefácio, ao expor os fundamentos geográficos da história, Hegel alude aos Estados Unidos e à América como uma extensão do mundo europeu. Os Estados Unidos são, provavelmente, a "terra do futuro", enquanto a América Latina não suscita nenhum prognóstico favorável. Embora sublinhe que a história só trate do presente que existe e não possa arriscar profecias (pois, afinal, a história do futuro ainda está por fazer e só existe sua base física, a terra), Hegel adianta uma comparação que os dados da época permitiam: "Vemos a prosperidade da América do Norte, escreve ele, graças ao desenvolvimento da indústria e da população, à ordem civil e a uma firme liberdade (...). Ao contrário, na América do Sul, as repúblicas repousam somente no poder militar, toda a sua história é uma revolução constante" (pág. 76). Assinala que a diferença maior entre o Norte e o Sul reside no seguinte: a América do Sul foi conquistada, tendo em vista a exploração econômica pela metrópole, enquanto a América do Norte foi colonizada, possuindo assim a mentalidade pioneira dos europeus.
Passo agora a algumas observações sobre a tradução. A "Filosofia da História" é talvez o mais claro dos livros de Hegel, o obscuro. O estilo de Hegel padece de frases muito longas e utiliza frequentes períodos intercalados, com temível profusão de cláusulas restritivas e excesso de distinções. Visivelmente, ele quer dizer muitas coisas ao mesmo tempo. A tradução é bem feita e confiável. Os tradutores procuram adaptar o estilo à índole da língua portuguesa tal como é hoje escrita, cortando as frases longas e reordenando as idéias, de modo a subministrar ao leitor uma idéia de cada vez. Esse procedimento é legítimo e é também geralmente adotado pelos tradutores franceses, consoante as normas do bom estilo.
Tenho apenas uma dúvida no que respeita à própria forma do pensamento especulativo de Hegel: é frequente, na mesma frase, encontrarmos afirmações opostas que deságuam em outra proposição, que em geral concilia os opostos. Compreender esse sistema de opostos ao mesmo tempo (e não sucessivamente) é a essência do pensamento dialético. É bom lembrar que a proposição especulativa repousa nessa tensão dos opostos (como a madeira e a corda, que juntas constituem o arco) e requer ser lida de uma só vez, devendo o leitor esforçar-se por manter a tensão, recusando-se a considerar primeiro uma parte da proposição e depois outra. A verdade especulativa está no jogo da simultaneidade das determinações. Em todo o caso, esse não é um requisito marcante da "Filosofia da História", quanto o é da "Fenomenologia do Espírito", por exemplo. Não há dúvida que a densidade especulativa da "Fenomenologia" proíbe qualquer simplificação do estilo, o que não acontece com a mesma intensidade na "Filosofia da História", escrita a partir das anotações de estudantes e que traz em sua redação as marcas do ensino oral.
Quanto às opções de tradução, as principais são: autoconsciência para "Selbstbewusstsein", ao invés de consciência-de-si, mais generalizada em nosso país; real e realidade para "wirklich" e "Wirklichkeit", o que permite pequena confusão com real e "Realitãt", que é a realidade não conquistada pela razão. Também não me parece feliz razoável no lugar de racional ("vernnftig").
Há algumas impropriedades, como por exemplo traduzir "Stufen" por estágios, quando o correto seria estádios. Esse erro, aliás, tem sido muito frequente no Brasil. Também não me parece correto sofisticados para "gebildeten", que significa bem-formados e, pior ainda, sofisticado para "Feinheit", que poderia ser vertido por sutileza ou algo próximo. 

José Henrique Santos é professor do departamento de filosofia da UFMG.
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