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Alcir Pécora - 26 - Maio de 1997
A arte de ser discreto
Foto do(a) autor(a) Alcir Pécora

A arte de ser discreto

 

ALCIR PÉCORA

Acredite se quiser: uma das obras mais enigmáticas de todo o século 17 espanhol tem nada menos que quatro edições no Brasil (1). Trata-se de "Oráculo Manual y Arte de Prudencia", do jesuíta aragonês Baltasar Gracián (1601-1658), autor de preceptivas decisivas tocantes à composição da figura do "discreto", modelo de cortesão letrado do período dito "barroco".
A importância de Gracián nesse âmbito apenas encontra paralelo com a de outro jesuíta, Emanuelle Tesauro, e, no século anterior, com a de Castiglione, que sistematizou o modelo renascentista de cortesania. No caso de Gracián, ainda mais conta a sua obra, à medida que formula a mais completa das teorias da analogia, base da arte conceptista, em seu "Agudeza y Arte de Ingenio", de 1642. Propunha aí uma nova disciplina da matéria poética, cuja faculdade própria seria o "engenho", apto não apenas à obtenção da verdade ou do verossímil, como o fariam a dialética e a retórica, mas de ambos acrescidos de beleza. Tal seria a "agudeza", entendida como efeito de um ato de inteligência capaz de encontrar a correspondência secreta entre objetos extremos. A especificidade que a "agudeza" fornece para as práticas poéticas é, então, similar aos atos e saberes que compõem o "discreto", que, aliás, não seria perfeito sem o seu repertório engenhoso.
Pois bem, o "Oráculo" trata de formular, por meio da forma breve do aforismo, seguida de comentários explicativos não muito menos breves, os princípios do saber prático que regula as ações prudentes do "discreto". A noção de "oráculo" repõe a dos enigmas propostos pelos deuses antigos, mas nomeia também um jogo galante do século 17, em que os participantes vão trocando os papéis de oráculos e perguntadores. O termo "manual", por sua vez, refere o tamanho reduzido, de algo que se leva à mão, e contém a noção de síntese, ainda mais nítida quando se tem em mente que a "Arte da Prudência", como reza o título original, é "tirada dos aforismos que se discorrem nas obras de Lorenço Gracián" (pseudônimo usado por Baltasar para burlar, sem sucesso, uma eventual censura da Companhia de Jesus). "Arte", sabe-se, é termo empregado para referir um conhecimento prático, uma faculdade ou técnica de fazer determinada coisa. Quando a "prudência" é o objeto desta arte, está em jogo uma capacidade política, que a tradição medieval aplicava ao âmbito do governo das cidades e reinos, mas que, em Gracián, ganha estatuto de domínio das próprias paixões e de conhecimento de seus empregos cotidianos, tanto para o indivíduo só quanto em ação na sociedade, sempre êmula.
Enfim, o livrinho é uma obra-prima indisputada, com poucos rivais à altura nas alturas do "siglo de oro". Mas, ainda assim, não se segue que uma pragmática do homem de corte absolutista, imperial e contra-reformista do século 17 seja a tal ponto atrativa para os brasileiros que quatro diferentes editoras considerem oportuno lançá-la num mercado frágil e pouco dado a clássicos. Ademais, se o texto é enigmático, como já o título promete, interessa saber como se resolveram os problemas de sua tradução. E, sinto adiantar, em graus distintos, não se resolveram.
As duas edições mais antigas -da Haimsa e Ediouro- tomam a mesma tradução de um certo "Morus", cuja introdução e notas são inacreditáveis. Não quero demorar-me aqui; baste, para demonstração, o seu comentário ao primeiro aforismo, que afirma que tudo chega já a seu "ponto", um dos conceitos-chave do "Oráculo". Morus comenta, em tom "blasé", que "não podemos abster-nos de sorrir ao ler essa opinião"; e se supõe generoso quando concede que os "sociólogos" afirmam que "três séculos não bastam para mudar comportamentos adquiridos em centenas de milhares de anos", para, enfim, incentivar-nos a não desanimar diante deste pequeno deslize inicial do conselheiro já meio caído: "Examinemos os conselhos do velho Gracián para ver se mantêm sua validade".
O comentário do segundo aforismo é de pasmar: diante dos enigmas, descobre uma "peculiaridade desta obra de Gracián: a última frase do capítulo não tem muita relação com o restante da matéria tratada"; concede, porém, que "tais frases desconexas devem ter parecido importantes a Gracián". O samba do crioulo doido de Morus não tem limites: reconhece no jesuíta seiscentista ares de Bhagavad Gita e julga próprio contar ao leitor a anedota do bode de Napoleão, de muito uso entre administradores de empresas: enfia-se um bode onde se reclama de espaço e, quando se retira o bode, tudo continua o mesmo e parece mais amplo! Ghandi revém miudamente em seus comentários sempre atentos ao cotidiano das repartições e não deixa de proclamar "ahimsa!" -que quer dizer, parece, "não à violência!". Se é uma dessas duas edições que o leitor possui, sinto muitíssimo: o senhor tem um bode em casa! Experimente jogá-lo fora para ver se se sente melhor.
Mas deixemos o bode executivo-napoleônico-hindu e consideremos a hipótese de que o leitor preferiu adquirir "A Arte da Sabedoria Mundana - Um Oráculo de Bolso". Não, não se trata de um outro livro: é que a editora Best Seller achou que serviria melhor à globalização da cultura brasileira se, em vez de tomar o original espanhol, traduzisse do inglês moderno que o traduziu por "The Art of Wordly Wisdom". Um exemplo apenas da opção: a certa altura, comentando as dificuldades de se traduzirem os jogos agudos de Gracián, o tradutor inglês refere o aforismo 237, cujo original diz: "Nunca partir secretos con mayores. Pensará partir peras y partirá piedras", e vibra, com razão, diante ao achado de uma bela correspondência em sua língua: "You may think you'll share pears (partilhará peras), but you'll share only the parings (partilhará as cascas)", em que a troca da "pedra" por "casca" é compensada pela manutenção da paronomásia. E o que faz o tradutor brasileiro do tradutor inglês do espanhol? Traduz: "Pensará partilhar peras, mas partilhará só as cascas". Não é impressionante? Conseguiu perder um jogo de palavras em que espanhol e português partilham os mesmos termos: "peras (peras) /piedras (pedras)" e ficou sem a solução inglesa, já que "pears/parings" virou "peras/cascas". Ou seja, foi-se o literal, sem manter-se a aliteração: partilhamos as pedras e ainda engolimos as cascas!
Pode ocorrer, enfim, que o leitor já tenha tido tempo de comprar "A Arte da Prudência". O teor pragmático da noção de "prudência", talvez; os seus ensinamentos de autodomínio e autocorreção; os exercícios de conhecimento de si e das inclinações virtuosas e defeituosas; as suas regras de conhecimento dos outros e aplicação de técnicas de ocasião para obter êxito na selva do mundo -tudo parece estar sendo reinterpretado no cruzamento dos dois gêneros mais populares da pós-modernidade: o da auto-ajuda, quando a histeria social ensina a contar apenas consigo, e o da qualidade total, quando as ações no interior do grupo parecem ser decisivas para o sucesso da empresa, logo, da vida. É inverossímil, claro, mas pode ser verdadeiro: a rigidez das convenções do decoro e da racionalidade da corte absoluta contra-reformista parece transferível à compensação das fraquezas subjetivas e à gestão da produtividade do grupo. Sabe Deus, mas do jeito como vamos, Gracián ainda chega a Paulo Coelho.

Nota
1. Recentemente a Ediouro reeditou "Oráculo Manual e Arte da Prudência", tradução de Morus, publicado em 1984 pela Haimsa. 

Alcir Pécora é professor de teoria literária da Unicamp.
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