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Márcio Suzuki - 57 - Dezembro de 1999
A arte de interpretar
Foto do(a) autor(a) Márcio Suzuki

A arte de interpretar

 


Coletânea reúne textos de Friedrich Schleiermacher, um dos fundadores da hermenêutica

MÁRCIO SUZUKI

 Para Maria Lúcia Cacciola 

Dentre as figuras que fizeram parte do primeiro romantismo alemão, Friedrich Schleiermacher ganhou notoriedade sobretudo por seus trabalhos sobre hermenêutica. O leitor brasileiro poderá agora conferir se ele faz jus a essa fama consultando a presente coletânea, cuja edição atinge plenamente seu objetivo de proporcionar um primeiro contato com os textos do autor.
Estudiosos vêm há algum tempo discutindo a quem de fato caberia o título de precursor da idéia de uma técnica da interpretação do discurso. Segundo alguns, o mérito da descoberta teria sido de Friedrich Schlegel, de quem Schleiermacher teria sistematizado as idéias principais. Em sua "História da Crítica Moderna", René Wellek escreveu que Schlegel "bem merece ser considerado como o criador da hermenêutica, a teoria da "compreensão'", que depois seria desenvolvida por Schleiermacher.
Mas, se é assim, qual teria sido então a originalidade daquele a quem Nietzsche se comprazia em chamar literalmente pelo nome de "fazedor de véu" ("Schleiermacher")?

Hermenêutica geral
Antes de mais nada, há um consenso: é a ele, principalmente, que se deve a formulação da idéia de uma hermenêutica geral não restrita a disciplinas particulares, para a qual toda e qualquer atividade do espírito consiste numa operação de interpretação mais ou menos complexa. Assim, não apenas os textos religiosos ou jurídicos, não apenas a literatura ou história, também cartas, conversas, anúncios de jornal e mesmo o aprendizado da língua materna põem problemas de interpretação cuja dificuldade não deve ser minimizada.
Um artigo de jornal, por exemplo, pode demandar o mesmo esforço de compreensão que um epigrama. Como toda atividade intelectual traduz na verdade um esforço de intelecção, esvaem-se os limites que separam a literatura da não-literatura, relativizando-se assim o que seria a esfera autônoma da obra de arte. Não há coisas que podem e outras que não podem ser ditas belas; a diferença entre o texto literário e a fala comum é apenas de grau, de intensidade ou densidade de sentido.
Tudo o que ocorre no espírito suscita um exercício de interpretação. Toda atividade psíquica põe ao mesmo tempo um problema gramatical, e vice-versa. A hermenêutica tem, por isso, duas partes: a interpretação gramatical, que se ocupa da linguagem, e a interpretação técnica, que trata do aspecto "psicológico" da expressão.
Essas duas partes são, no entanto, uma só e devem ser pensadas segundo a dialética fichtiana da "determinação recíproca". A universalidade da língua determina o modo como o particular pensa e sente, fala e escreve; mas é o indivíduo que atualiza e recria, a cada instante, a língua. Não há pensamento sem linguagem. Mas esta não pode ser concebida como uma linguagem logicamente neutra, sem nenhum resíduo de impureza deixado como impressão digital da individualidade de cada autor.

Arte divinatória
Apesar da insistência sobre a dependência recíproca dos dois princípios, foi o aspecto psicológico que acabou prevalecendo na historiografia. É bastante comum encontrar a afirmação de que a hermenêutica schleiermacheriana padece das insuficiências do idealismo, isto é, de uma filosofia fundada na subjetividade. Talvez seja verdade que os achados mais interessantes de sua técnica de interpretação estejam na parte psicológica, naquela arte exegética que postula que o intérprete pode ser capaz de "entender um autor melhor do que ele mesmo" como já dizia Kant referindo-se à sua própria interpretação da doutrina das idéias de Platão. Mas essa "arte divinatória", como a denominou Schlegel, certamente não esgota toda a hermenêutica.
Nenhum pensamento, nenhuma emoção pode ser percebida sem ser ao mesmo tempo expressa em linguagem. Aquilo que vale para uma comunicação entre dois ou mais indivíduos vale também para o "interior" de um mesmo indivíduo. Mas como se pode saber que o procedimento é exatamente o mesmo, num caso e noutro? Não é somente por meio da linguagem que se pode ter a confirmação de que é exatamente isso o que ocorre?


Hermenêutica. Arte e Técnica da Interpretação
Friedrich Schleiermacher Tradução e apresentação de Celso Reni Braida Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112) 102 págs., R$ 13,00



Dois ou mais indivíduos falam a mesma língua: eles são capazes de se entender porque cada expressão verbal é resultado de uma operação ao mesmo tempo igual e diferente de si mesma. Cada indivíduo "esquematiza" a idéia que quer expressar, mas esse esquematismo não é ele mesmo distinto da própria ação de se exprimir e, portanto, da constituição da linguagem. Naturalmente, os esquemas são aproximados, não inteiramente coincidentes. É por isso que, embora plenamente compreensível para os outros, a linguagem de um indivíduo não é exatamente idêntica à de outro.
Schleiermacher elabora assim sua concepção da linguagem a partir da idéia kantiana de esquematismo transcendental, pensado, porém, não apenas como regra para a aplicação das categorias puras do entendimento, mas como regra para a intuição do sentido de qualquer palavra ou conceito. Poder-se-ia talvez chamá-lo, usando ainda a terminologia crítica, de "esquematismo reflexionante". Pois os românticos não deixaram de notar essa curiosa coincidência: a palavra "esquema", escolhida (conscientemente?) por Kant, tem nos tratados de retórica o mesmo sentido que o termo latino "figura". Esquemas são as figuras de estilo, o sentido figurado.
A linguagem é, já em sua origem, "esquematizante", quer dizer, metafórica. A lição de Rousseau e de Herder, de que o primeiro sentido é sempre o do tropo, não ficou esquecida. Mas, se, de um lado, a língua é uma criação individual, por outro lado, pode-se afirmar que ela também é uma produção anônima, inconsciente (visão compartilhada por Novalis, Schlegel e Schelling), cuja lógica intrínseca determina previamente se e como um novo sentido pode ser introduzido e aceito. Quando se pergunta pela origem de uma língua -problema que inquieta filósofos racionalistas e empiristas dos séculos 17 e 18 -, não se pode esquecer de considerar os dois lados implicados em toda "criação" da língua, isto é, em toda hermenêutica: a determinação dialética recíproca entre o particular e o universal, entre o psicológico, subjetivo, individual, e o gramatical, objetivo, coletivo.
A língua é, assim, um órgão a serviço do sujeito. Mas cada indivíduo é também um "órgão da língua". "Não há língua sem fala", diz Roland Barthes, "e não há fala fora da língua". É por intuições iguais a essa que se pode compreender o interesse que o romantismo vem despertando entre adeptos de correntes por vezes antagônicas como o neo-estruturalismo, a nova hermenêutica e o desconstrucionismo.

A inocência filológica
Com o romantismo, para descrevê-lo com palavras do próprio Schleiermacher, a filosofia perdeu sua "inocência filológica". Não espanta, por isso, que uma concepção semelhante da linguagem vá reaparecer no jovem Nietzsche. No seu "Curso de Retórica" ("Cadernos de Tradução", do departamento de filosofia da USP, tradução e notas de Thelma Lessa da Fonseca), há uma notável síntese do que seria a língua para os românticos: " Tudo o que habitualmente se chama de discurso é propriamente figuração ("Figuration"). A língua é criada pelos artífices individuais da língua, mas fixada pelo que é eleito pelo gosto de muitos. Uns poucos indivíduos falam "schémata" (esquemas), a sua "virtus" para muitos. Se eles não acabam por se impor, qualquer um se volta contra o "usus" e fala de barbarismos e de solecismos. Uma figura que não encontra quem a compre, torna-se erro. O que é considerado erro, quando retomado por algum "usus", torna-se figura." O importante aqui, obviamente, não é tanto indagar por que caminhos tortuosos (Humboldt, Schelling, Gerber...) as elaborações dos românticos chegam ao autor de "Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral", e sim entender como filosofias tão distintas podem partilhar de visão semelhante a respeito da natureza da linguagem. Não deixa de ser irônico que Nietzsche tenha, nesse caso, idéias parecidas com as de filósofos que gostava de desmascarar como "fazedores de véus"...
Com isso talvez se possa relativizar um pouco a classificação que chama de "clássica" à hermenêutica romântica, por oposição à "nova hermenêutica" que surge com Heidegger. Da mesma forma, não faz sentido perguntar quem foi o criador da hermenêutica moderna. Se se atribui a originalidade da criação a Schlegel, e não a Schleiermacher, isso ocorre porque de certo modo se esquece que, para ambos , o ato de interpretar não difere do ato de criar, que entender já implica também se exprimir, e a expressão é sempre, em alguma medida, original. Quando o filósofo Schelling foi criticado por fazer uso, em suas obras, de idéias alheias, Schleiermacher escreveu que aqueles que o censuravam não percebiam que o sistema schellingiano já era, na verdade, "uma segunda invenção", que fora apenas casualmente precedida por uma primeira.

 


Márcio Suzuki é professor de estética do departamento de filosofia da USP e autor de "O Gênio Romântico - Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel" (Iluminuras).

Márcio Suzuki é professor do departamento de filosofia da USP.
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