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Lygia Sigaud - 81 - Janeiro de 2002
A antropologia e o mundo aos pedaços
Foto da capa do livro Nova luz sobre a antropologia
Nova luz sobre a antropologia
Autor: Clifford Geertz
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Zahar - 247 páginas
Foto do(a) autor(a) Lygia Sigaud

Não foi feliz a tradução do título desta edição brasileira: "Nova Luz sobre a Antropologia" não corresponde à idéia do original em inglês. "Available Light: Anthropological Reflections on Philosophical Topics" significa literalmente "Luz Disponível: Reflexões Antropológicas sobre Tópicos Filosóficos". Está certo que tal tradução termo a termo ficaria estranha em português, mas "Nova Luz" induz o leitor à suposição de que neste livro Clifford Geertz está fazendo uma contribuição original, o que não é o caso.

Além disso, a omissão aos "tópicos filosóficos" acaba traindo a intenção explícita de fortalecer a ligação entre antropologia e filosofia. Tal disposição do autor não é trivial para a história recente da disciplina. Ela foi e continua a ser fonte de inspiração para os chamados "estudos culturais" no mundo anglo-saxão e tem contribuído para popularizar a antropologia. Está longe no entanto de ser consensual, pois há os que temem se descaracterizar e se empenham na manutenção das fronteiras.
Geertz inicia o livro com um prefácio curto, no estilo anúncio breve de conteúdo e intenções. O primeiro capítulo é uma conferência inédita (1999), na qual narra fatos relacionados à sua carreira Trata-se de um documento autobiográfico, elaborado com vistas à montagem da "própria lenda" e não sem interesse para os historiadores da disciplina.
Os textos seguintes abordam questões que se situam na interface da antropologia com a filosofia. No capítulo dois (1968), o ponto de partida é uma premissa filosófica: o pensamento como ato social em relação ao qual se é moralmente responsável (John Dewey e Friedrich Nietszche constituem as principais referências). Geertz discute algumas implicações da premissa a partir de sua experiência de campo na Indonésia e no Marrocos. O pensamento, parece-lhe então, é mais eficaz para expor problemas do que para encontrar soluções. É nesse contexto que discute os impasses da reforma agrária naqueles países.
O capítulo três (1983) formula fortes críticas ao anti-relativismo e ao moralismo que o sustenta. Dirige-se aos antropólogos, mas muitas de suas referências são filosóficas. O "futuro do etnocentrismo" é tema do capítulo seguinte: nele o autor busca primeiro distinguir o etnocentrismo do racismo e, em seguida, coloca em relevo as virtudes da etnografia: "a grande inimiga do etnocentrismo", o meio para imaginar a diversidade e romper o confinamento em planetas culturais.
O mais longo capítulo de "Nova Luz" inicia com um ensaio que discute a crise permanente de identidade entre praticantes da antropologia em virtude do desaparecimento de seu objeto (os "povos primitivos"). Geertz pondera que os antropólogos não correm o risco de perda de identidade, pois o que os distingue é o método baseado no trabalho etnográfico de campo, "princípio e fim de antropologia social". As angústias dos antropólogos e a popularidade da disciplina são sinais de que a "maneira antropológica" de "ver", "descobrir" e "escrever" sobre coisas tem algo de específico a oferecer no domínio dos estudos sociais.
A esse ensaio (1985) segue-se o comentário da querela Sahlins-Obeysekere a respeito do significado dos acontecimentos que marcaram o contato do Capitão Cook e sua tripulação com os nativos do Havaí, no final do século 18 (ver resenha na pág. 6). Para Geertz, é de controvérsias como essa que a antropologia extrai sua vitalidade. Aí o que está em jogo é a seguinte questão: como devemos entender os atos e as emoções de povos distantes e em épocas remotas? Embora achando Sahlins mais persuasivo, Geertz não toma partido no debate e incita os dois colegas a refrearem o rancor e a continuarem a conversar.
No terceiro texto do capítulo, ele contrapõe o ponto de vista de Pierre Clastres, caracterizado como visão nostálgica do passado, e o de James Clifford, visto como aquele que tem o "futuro nos ossos". Serve-se da comparação para discorrer sobre o modo como os antropólogos devem exercer seu ofício. As relações entre história e antropologia são o tema de outro texto incluído no capítulo, o qual termina com uma discussão sobre saber local.
Como reuniu coisas ditas a platéias distintas, Geertz logra neste livro contemplar múltiplos interesses. Discute os teóricos culturalistas e suas abordagens a respeito das emoções, da paixão e do sentimento; tematiza as reflexões filosóficas de Charles Taylor a respeito das ciências humanas; trata do legado de Thomas Kuhn e do sucesso de sua teoria sobre os paradigmas; escreve sobre a psicologia cultural de Jerome Brumer. Os capítulos sobre a reconfiguração religiosa da política de poder e sobre o esgarçamento do mundo após a queda do Muro de Berlim contêm reflexões que seguramente atrairão a atenção do leitor ainda perplexo com os acontecimentos de 11 de setembro em Nova York. Geertz fornece pistas para se entender como formas mais particulares e particularistas de auto-representação coletiva, dentre elas as religiosas e étnicas, se impuseram no cenário mundial e de que modo as diferenças de crenças se tornaram mais visíveis e tensas, a partir da desmontagem do mundo, da globalização e do aumento da interdependência e mobilidade. Teorias como as da guerra de civilizações de Huntington e da pobreza como explicação para o papel destacado das concepções religiosas são objetos de sua crítica. Mais do que em qualquer outro texto do livro, o autor coloca em evidência de que forma a antropologia pode contribuir para compreender o mundo em pedaços no qual vivemos.


Lygia Sigaud é antropóloga do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Lygia Sigaud é antropóloga.
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