Logotipo do Jornal de Resenhas
Fábio de Souza Andrade - 19 - Outubro de 1996
A angústia da influência
Foto da capa do livro A arte da fome
A arte da fome
Autor: Paul Auster
Tradução: Ivo Korytowski
Editora: José Olympio - 298 páginas
Foto do(a) autor(a) Fábio de Souza Andrade

Um jovem romancista inglês (Martin Amis) acredita ter acertado a mão em seu último livro, "A Informação", um romance satírico sobre a inveja no mundo literário. Até aí nada demais. O rebuliço se armou quando, como acompanhamento da crise da meia-idade, Amis resolveu trocar de amigos, mulher, agente literário e aposentar a fleuma britânica, entregando-se às delícias do mercado e exigindo seu peso em ouro, como adiantamento de direitos autorais. Choro e ranger de dentes, acusações de mercenarismo, vulgaridade, traição à arte e ao refinamento dignos de um filho de Oxbridge: o romance sai das páginas para a vida, e a igrejinha literária inglesa já tem seu bode expiatório, condenado a enxugar as lágrimas do exílio brando nos braços da namorada americana, usando os dólares como lenço de papel.

Por que esta pequena fábula moderna sobre a fogueira das vaidades literárias mereceria nossa atenção? Hesíodo já distinguia a boa e a má inveja, um impulso saudável de emulação, motor do progresso, e a competição adaptada ao que há de mais mesquinho e destrutivo no homem. O caso Amis interessa não pelo que acrescenta sobre esta última, corriqueira mesmo que nem sempre banal, mas por ilustrar esta modalidade singularmente literária de inveja que Harold Bloom batizou de "angústia da influência".
Angustiados, assim os ingleses assistiram, século a dentro, a um longo e, parece, duradouro pôr-do-sol do seu Império e roeram as unhas bem-cuidadas, enquanto "o espelho partido da criada" -como Joyce definia a arte irlandesa e por extensão a das ex-colônias- se mostrava infinitamente mais revelador e interessante. Hoje, este imbróglio se manifesta sob a forma de um país atônito e remoendo a culpa do colonialismo, a nostalgia de um poder que se esvaiu, incerto de como se comportar em meio ao multiculturalismo e à globalização.
Literariamente, presencia-se uma guerra silenciosa entre as novas vozes -Salman Rushdie, Kazuo Ishiguro, Hanif Kureishi-, que, independentes de força literária, contam com a vantagem de tratarem de assunto na ordem do dia (a perspectiva dos que vêm das margens) e os continuadores da tradição autocentrada, contemplação do próprio e decadente umbigo. O complicador é a má consciência dos colonizadores, que, como os juízes, em dúvida sobre o mérito artístico, policiam-se para não menosprezarem o que antes não era ouvido, o excêntrico, o marginalizado. A. S. Byatt, a autora de "Possessão", esbraveja contra um preconceito às avessas, que hesita em premiar autores de talento que não têm o aval de um nome difícil de pronunciar na língua de Shakespeare.
Amis, como seu ex-melhor amigo e colega de quarto em Oxford, Julian Barnes, possível modelo do escritor caricaturado em "A Informação", é um estilista de mão-cheia. Pertence a categoria dos virtuoses, os trapezistas da palavra, empenhados em mostrar truques novos e melhores que os de seus antecessores. Seu modelo é o Nabokov da vivacidade das metáforas inesperadas e precisas. Ao fantasma do russo, soma-se o do pai, Kingsley Amis, um dos "angry young men", como ficou conhecida sua geração de língua afiada, que incluía também o dramaturgo John Osborne, reconhecido autor cômico de "Lucky Jim", romance que escarnece a classe média e o meio acadêmico inglês. O universo de sua derrisão não é muito distante do paterno (investidas contra o "establishment", a exibição do esforço, muitas vezes ridículo, das elites em preservar valores anacrônicos), mas, ao contrário de Amis pai, (ainda?) não encontrou o refúgio de um neoconservadorismo seguro de si.
A tempestade em copo d'água provocada pelo lançamento em 1995 de "A Informação" chama a atenção como sintoma de outro impasse, menos trivial: a hesitação do romance entre a respeitabilidade da obra séria, obra de arte, e o aspecto descartável de literatura de aeroporto, entretenimento sem mais. Os ingleses sempre pretenderam manter as coisas em seus devidos lugares (Burgess cá, Archer lá). Os novos romancistas não tem pudor em aceitar o romance como fato de mercado (basta pensar na aproximação imediata com o cinema de gente como Roddy Doyle -"The Commitments, The Van"- ou Kureishi -"My Beautiful Laundrette"), coisa que ele sempre foi desde a origem (Defoe, Fielding, Richardson eram pagos por página escrita).
Da perspectiva inglesa, Amis acendeu velas para dois deuses brigados entre si. Sua escrita tem a pretensão de artística, filia-se à tradição agonizante dos "papagaios de Flaubert", à qual o romance moderno parece condenado. Por mais que brinque com o modelo, já virado e revirado ao avesso pelo modernismo, Amis ainda faz uma versão debochada e pós-moderna, parodística, do velho romance realista -elevado ao status de obra de arte pelo francês. Mas, apesar de exagerar na dose (seus romances são divertidos, mas redundantes, catataus de 500 páginas enxugáveis para 200), tem apelo popular, pode aspirar às benesses que um autor de best sellers merece.
Veja-se seu melhor romance, justamente o pomo da discórdia. A disputa entre Gwyn Barry e Richard Tull, o apatetado e politicamente correto escritor de sucesso, cheio de si, e o invejoso autor de talento, que não faz concessões ao gosto médio, criador de romances sem público, difíceis, antecipa o barulho que o romance viria a causar. O leitor admira a mão segura e a ironia de Amis, dá boas risadas com sua versão verossímil de como a inveja toma conta de um homem, admira o autor quando faz pouco da idéia de uma meritocracia no mundo moderno. Mas a pretensão de pôr em perspectiva cósmica, astronômica a pequenez e o ridículo da disputa povoam o romance de ilhas de tédio. Muita munição para pouco resultado. As piscadelas dirigidas ao leitor (como a introdução no romance, narrado em terceira pessoa, do autor como personagem), estas perturbações voluntárias do mundo de fantasia do romance, são os tiques do escritor que reconhece o esgotamento de uma fórmula, engolida pelo cinema, pelos tempos.
Do outro lado do Atlântico, menos consumido pelo dilema entre o marfim da torre e o verde das notas, um escritor da mesma geração de Amis exibe sua versão da angústia. Em "A Arte da Fome", Paul Auster, romancista que vende maravilhosamente bem, declina a lista dos autores com os quais tem afinidades eletivas. Entre artigos, prefácios e entrevistas com o autor, o volume vai construindo uma linhagem nobre para o autor: Kafka, Knut Hamsum, Beckett, Isaac Babel, entre outros. Nomes ligados a uma literatura do menos, econômica, que, paradoxalmente, não casam bem com os romances urbanos de Auster ("A Trilogia de Nova York", "Palácio da Lua", além dos contos que inspiraram "Cortina de Fumaça" no cinema).
Auster serve-se de formas de sucesso na América (o romance "noir" de Chandler, o humor judaico urbano) e caiu no gosto do público. Como em Amis, o autor-personagem, embaralhando realidade e ficção, os trejeitos auto-referenciais da narrativa moderna e a compulsão de citar parodiando do pós-modernismo têm lugar garantido. Se a árvore genealógica parece uma busca de legitimação e a angústia um pouco afetada, não há como negar que os enredos rocambolescos de Auster são também a manifestação de uma forma de angústia, o estrangulamento de um beco sem saída da narrativa, que, bem ou mal resolvido, ainda apetece a uma grande massa de leitores.


A informação
Autor: Martin Amin
Tradução: Sérgio Flaksman
Editora: Companhia das Letras - 496 páginas
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP.
Top